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Cultura

Jean Hebette se foi

Jean Hebette morreu ontem, na sua terra natal, a Bélgica, aos 91 anos. Uma notícia triste e dolorida, embora já a esperássemos em função da sua prolongada enfermidade.

Cedo espaço a Gutemberg Guerra, companheiro muito próximo de Jean, para me manifestar em seguida. Gutemberg escreveu e difundiu seu adeus por escrito.

Para dar conta da saudade…

Gutemberg Guerra

Era um dia de outubro de 1986. De malas prontas e fazendo os últimos movimentos para a mudança, fui interpelado pelo saudoso amigo e colega Jorg Zimmermann sobre onde eu ficaria na chegada em Belém. Embora com perspectiva de aluguel de um apartamento, nos primeiros dias eu ficaria em um hotel. O “Alemão” ofereceu o contato de um amigo que me receberia, se eu quisesse. Declinei alegando que chegaria de madrugada, que não queria incomodar e que não precisaria daquele apoio tão gentilmente oferecido pelo afetuoso colega. O último argumento que Jorg utilizou foi de que o seu amigo que estava em Belém era padre, e portanto, acostumado a acolher, mesmo com os incômodos do horário, o que os religiosos dedicam a Deus como penitencia.

Aprendi, ali, que eles faziam parte de uma confraria que está desaparecendo: a da solidariedade. Sorri e brinquei com o querido amigo, relembrando esse fato várias vezes, depois que minha amizade com o Jean Hebette se estabeleceu como uma relação que vai muito além do que eu possa descrever. Conheci o Jean na banca de exame para o Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, para o qual me habilitara logo no mês seguinte à minha chegada em Belém. Concorria para ter experiência, sem expectativa de que pudesse ter um resultado positivo em certame tão concorrido.

Uma das perguntas, feita por ele, era porque eu desejava fazer o mestrado em planejamento se eu já tinha uma especialização nessa área. Dei a resposta com um argumento cartorial, uma vez que a vivência anterior, entre pesquisadores na Embrapa, demonstrara que a disputa no meio científico passava pela habilitação formal, aspecto que Jean Hebette superou pela produção publicada obrigando às instituições a lhe conferirem notório saber. Talvez por isso ele mesmo tenha desdenhado da formalização tanto quanto alguns de seus contemporâneos.

Mais adiante ele sofreria duramente por conta dessa premissa que me ajudaria a superar barreiras e preconceitos formalistas. Contei com o seu apoio concreto para minha formação acadêmica, como orientado no mestrado, como conselheiro no doutorado, como pesquisador e professor na minha trajetória profissional. Construi com ele relações nacionais e internacionais como desdobramento desse processo.

Jean Hebette chegou no Brasil em 1967, com uma leva de religiosos europeus que se dedicaram à Teologia da Libertação, alguns deles tendo vivido na África o período de descolonização. Os oblatos viveram internamente um duro e reflexivo processo sobre sua vocação, da qual Jean Hebette participou intensamente, conforme pude constatar com ele em nossas conversas sobre o assunto.

Inicialmente ele trabalhou, em Belém, com mulheres prostituídas, tendo uma participação ativa no apoio humano a essas profissionais, tendo firmado relações afetivas com pessoas que reconstituíram a sua vida e guardaram com ele uma profunda e respeitosa amizade. Qualificou-se para o trabalho junto aos camponeses fazendo o curso formal de Economia na UFPA e depois o primeiro Curso de Especialização em Desenvolvimento Regional (FIPAM/NAEA), iniciando uma profícua carreira de pesquisador sobre o processo de ocupação da Amazônia.

Palmilhou a Belém-Brasília, a Transamazônica e as estradas que se abriam em Rondônia. Preocupou-se muito com o efeito dos Grandes Projetos sobre a vida camponesa, o que se tornou o principal foco de seus estudos e ação política, no qual se notabilizou. Formou gerações de pesquisadores seja pela orientação formal nos mestrados e doutorados, seja pelo engajamento de bolsistas de iniciação científica ou de treinamento em seus projetos de pesquisa, seja pelas orientações voluntárias que realizava nas reuniões que promovia.

Jean era um homem de fé: tinha compromisso com o que acreditava. Seus votos eram com sua consciência e viveu, por isso, as contradições do seu engajamento institucional na Igreja, na Universidade, na vida. Seu legado vai muito além do que se possa perceber pelas manifestações dos seus inúmeros alunos, amigos, admiradores pessoais ou institucionais. A certeza de que permanece entre nós se confirma pela infinidade de vezes que vamos falar e ouvir dele se dizer ou escrever.

Em vida, teve o reconhecimento da Universidade Federal do Pará como Professor Emérito e recebeu dos Geógrafos, em 2011, a homenagem máxima no Simpósio Internacional e Nacional de Geografia Agrária – SINGA. Desde que foi para sua terra natal, celebrávamos à distância sua vida nos seus aniversários, aos 15 de Fevereiro de cada ano. Já não poderemos visitá-lo fisicamente em Barvaux, na Bélgica, onde encerrou sua participação terrena neste 11 de novembro de 2016 e por isso teremos que viver outras formas de sua presença.

Dos que partilharam o cotidiano com ele, tive o privilégio de ser um, e para mim ele estará como um encantado, sempre junto, a inspirar e a fazer dele mais do que uma memória distante. Para dar conta da saudade, para mim, Jean Hebette vive!

Discussão

4 comentários sobre “Jean Hebette se foi

  1. Querido Gutemberg, nao tenho palavras, pois acabei de saber do falecimento do nosso eterno JEAN, fica a saudade e a lembranca dos acalorados debates academicos no NAEA.
    Profa.Celina Cunha, (FACECON/ICSA/UFPA) bolsista de iniciacao cientifica CNPQ do JEAN de 1987 a 1989 e orientanda de Mestrado de 1989 a 1994.

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    Publicado por Celina Julia Nunes Santos Cunha | 12 de novembro de 2016, 17:43
  2. Tive alguns contatos com o Jean, em reuniões de trabalho e algumas missões, termo que os pesquisadores europeus dão aos trabalhos e levantamentos de campo. Foi um exemplo de pesquisador e pessoa humana para todas as equipes com que trabalhava. Sempre generoso e humilde, muito humilde. Um grande homem se foi.

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    Publicado por Jonas Veiga | 15 de novembro de 2016, 16:38

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