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Imprensa, Sem categoria

A história na chapa quente (49)

“Comunicação militante”:

uma história “corrigida”

(Este artigo, publicado no Jornal Pessoal 245, de março de 2001, revela o quanto é antigo o facciosismo de certos críticos.)

O publicitário Francisco Cavalcante é um desonesto. No seu primeiro – e, até agora, único – livro, Comunicação Militante [ele cometeu outros livros depois deste], escrito a quatro mãos com Ruth Vieira e publicado pela Labor Editorial no final do ano passado, ele inclui a intervenção que fez na mesa-redonda “Comunicação e democracia”, durante o I Fórum Municipal de Cultura de Belém, realizado em novembro de 1998. A desonestidade intelectual do dono da Vanguarda Propaganda, detentora da conta de publicidade da prefeitura petista da capital, é múltipla nessa inserção.

Ele se permitiu “corrigir” a transcrição da sua intervenção. Mas não se obrigou sequer a reproduzir as manifestações dos outros participantes da mesa, Alex Fiúza de Melo e eu, com os quais manteve polêmica na ocasião e que agora, na versão unilateralmente “corrigida”, se propõe a atacar como se todos estivéssemos num ringue de boxe – Alex e eu de punhos amarrados, naturalmente.

Se Chiquinho Cavalcante tivesse escrito um artigo expondo suas ideias e combatendo as minhas, eu estaria aqui respondendo aos seus argumentos como se estivéssemos no curso de um diálogo, de uma controvérsia ou mesmo de um duelo, em igualdade de condições, num jogo limpo e leal.

Ele até poderia ter optado por utilizar sua intervenção como ponto de partida para um novo texto, escrito com a intenção de ser um capítulo do seu livro. Apresentaria meus argumentos e os contestaria da forma que quisesse, mas garantindo a idoneidade do discurso e o necessário contraditório.

A voz do dono

Ao invés disso, a transcrição é apresentada como se expressasse, com um grau aceitável de fidelidade, um debate travado “ao vivo”, revelando a capacidade de Chiquinho de me vencer diante do auditório. Os impulsos patológicos (sintoma de uma doença infantil do narcisismo) revelam-se quando, na versão “corrigida”, sujeita ao arbítrio absoluto de uma das partes, o publicitário, sem esperar pelo reconhecimento alheio, proclama sua glória:

Reconheço [sic] como um ato de coragem, de ousadia, eu vir aqui e debater com o mais premiado jornalista do Pará, assim, de maneira franca, fazendo afirmações duras, desmentindo-o em público, quando sei que boa parte da plateia não veio aqui para me ouvir e sim para ouvi-lo”.

Menas verdade, camarada. O encontro foi promovido pela Fumbel, a fundação cultural da prefeitura. A esmagadora maioria do auditório era de militantes petistas. Louvo o espírito pluralista dos que me incluíram na programação, mesmo sem desconhecer minha condição de bête noire do edmilsonismo, versão caricatamente stalinista de socialismo.

Só que o local do encontro, originalmente o colégio Rego Barros, na avenida Júlio Cézar, foi transferido para o auditório do colégio Nazaré, muito distante dali, sem que eu tivesse sido informado. A condução que me conduziria foi prometida (em função da distância) e não veio. Nenhum contato de confirmação. Só fui para o Nazaré (gratuitamente) porque, ao abrir o jornal de sábado, enquanto esperava pelo carro que não vinha, li uma notícia sobre o encontro.

Não vejo um toque de malícia nesses desacertos. Podem ter acontecido sem propósito algum, por desatenção ou desleixo. Mas se houve transcrição das fitas gravadas e essa transcrição foi cedida a um dos participantes, devia ter sido oferecida também aos demais integrantes da mesa, dando-lhes condição de recorrer a elas como elemento de prova, caso necessário. Ficou agora apenas a transcrição “corrigida” do Goebbels da administração Edmilson Rodrigues.

Vou dar-lhe de ganho que ele foi mais corajoso ao enfrentar um jovem auditório petista, mobilizado pela administração municipal; que foi garboso no confronto com o apparatchick acantonado na PMB, e que foi mais inteligente no duelo comigo. Mas desde logo é preciso deixar de lado essa bobagem de que o Gramsci de Chiquinho é “mais verdadeiro” do que o apresentado por mim ou pelo professor Alex Fiúza de Melo.

O Gramsci dele

Alex escreveu um livro criativo e provocador sobre o grande pensador italiano. Eu publiquei meu primeiro artigo sobre Gramsci antes que sua primeira obra tivesse sido traduzida no Brasil, lendo-o em edições da revista Rinacitá (que tenho até hoje, para quem quiser conferir) adquiridas no Rio de Janeiro. Em 1973 (ou 1974), publiquei em O Jornalista, jornal do nosso sindicato, um longo artigo sobre o princípio do jornalismo orgânico de Gramsci, talvez o primeiro a explorar suas ideias por esse prisma. Foi com essas ideias, claramente apresentadas, que organizei o [semanário] Bandeira 3, em 1975.

Posso ser um néscio em Gramsci, um dos autores que mais li na minha vida, autor de um documento (Cartas do Cárcere) que toda pessoa devia ler quando estivesse ameaçada pelo ceticismo e a desesperança nos homens. Mas minha produção sobre ele está disponível para quem quiser contestá-la, à vontade, concretamente. Se alguma vez o publicitário Cavalcante colocou em letra de forma o que aprendeu com o fundador do Partido Comunista Italiano, essa sabedoria ainda não foi servida à opinião pública. Até lá, continuaremos ignorando o “verdadeiro Gramsci” que ele descobriu.

O dono da Vanguarda Propaganda acha que me diminui ou humilha ao me tratar, na versão “corrigida” (à maneira dos “processos de Moscou”, obviamente), como uma pessoa “conservadora e de direita”. E daí, cara-pálida?

Quando entrei na universidade [em São Paulo], era o que me diziam de alguns autores que me haviam impressionado muito quando os li, sem verificar-lhes os rótulos (para mim, sem serventia). Eram “conservadores e de direita”, por isso deviam ser deixados de lado, sepultados vivos no índex do fanatismo milenarista da esquerda.

Como eu me considerava iconoclastamente “de esquerda” (mais por exclusão), nunca de partido (sem desmerecê-los), tratei de reler e reavaliar todos aqueles intelectuais que me haviam feito descobrir um Brasil novo, um Brasil perturbadoramente diferente do que era descrito pelo catecismo dos manuais, dos tratados oficiais, que meus “companheiros de viagem” etiquetavam como seres desprezíveis.

Era a eles que eu estudava no meu projeto de dissertação de mestrado na USP, estimulado pela convivência com meu orientador, Oliveiros S. Ferreira, um intelectual “conservador e de direita” que tinha, na sua sala de estudo, os retratos de Rosa Luxemburgo e Leon Trotsky, duas das minhas maiores admirações humanas, também.

Se estou em companhia de Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Octávio de Faria, Lourival Fontes, Almir de Andrade ou Gustavo Barroso, então não me aborreço, nem me importo com as catalogações do publicitário Cavalcante. Foi ao ler esses autores, de par com Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Sérgio Buarque de Holanda ou Nelson Werneck Sodré, que aprendi a descobrir um Brasil que não cabe no discurso reducionista de marqueteiros políticos de pé quebrado.

Francisco Cavalcante é um desse tipo, que amolda os fatos à sua conveniência, disposto a caluniar quando serve aos seus interesses. Num dos trechos da sua “reconstituição” (bem ao estilo de ditadores, de direita ou de esquerda, Stálin ou Hitler), ele diz que eu não tenho o direito de acusar o prefeito Edmilson Rodrigues de se ter submetido ao grupo Liberal, após arreganhos de independência, porque eu teria sido um serviçal de Romulo Maiorana:

“[Lúcio] não apenas almoçou, tomou café da manhã e jantou muitas vezes com os maiorana [em minúsculas no original], de quem partilhou a amizade até seu brusco falecimento; escreveu durante anos a principal coluna do jornal, o Repórter 70; foi correspondente internacional; teve um programa de tevê com o seu nome, enfim, exerceu como subordinado de Romulo e seu fiel escudeiro, funções de mando no grupo. Agora, que perdeu a vaga, vira opositor ferrenho, talvez tentando retornar na marra”.

Um modo de caluniar

Mais do que as 195 páginas desse opúsculo propagandístico, destituído de qualquer valor técnico ou científico, o trecho citado desnuda por inteiro o “modo edmilsoniano” (muito mais do que petista, ao qual não faz justiça) de lidar com a comunicação social. Deve ser destrinchado por seu valor pedagógico.

As mentiras:

1 – Romulo Maiorana não teve “brusco falecimento”. A evolução da doença foi, infelizmente, rápida. Mas não apanhou de surpresa os que o acompanhavam mais de perto.

2 – Nunca almocei, tomei café da manhã ou jantei com Romulo, sua esposa ou qualquer dos seus filhos. Houve uma exceção, no nosso derradeiro encontro, no Rio de Janeiro, um almoço a sós, testemunhado apenas por Déa Maiorana (Roberta chegou depois e permaneceu ao largo).

Frequentei o gabinete dele no jornal, às vezes diariamente. Ali, chegávamos a conversar por longos períodos, com total informalidade e absoluta lealdade, offs que respeito até hoje, mesmo quando revelar alguma coisa podia me trazer grandes vantagens em certas situações, sobretudo judiciais. Mal começavam a chegar os participantes do “birô”, porém, eu me retirava do gabinete. Nunca fiquei para o uísque amigo de todos os dias.

Por gostar dele, o que implicava aceitar suas muitas falhas (e valorizar suas inúmeras virtudes), eu evitava que o aspecto profissional se confundisse com o pessoal. Havia muitas divergências entre nós, a serem resolvidas profissionalmente, de tal maneira a não sacrificar a relação pessoal, o que só seria possível se eu me mantivesse à distância do séquito.

Fiz até grosserias, como recusar presentes que ele me dava com sincera afeição. Qualquer um que testemunhou nossa convivência rejeitará o que o publicitário Cavalcante diz, com supina (ou equina?) leviandade.

3 – Durante os quatro ou cinco anos em que participei como um dos redatores do Repórter 70, fui responsável apenas pelas notas na parte de cima da coluna, onde sempre fiz jornalismo, sem qualquer interferência sobre os valorizados gossisps dados “em poucas linhas”, onde havia o dedo, a voz e os interesses do dono. No período, o R-70 deu muitos “furos”.

Vou citar apenas um: a revelação, com total exclusividade, do encontro de Sahid Xerfan com Jarbas Passarinho, manchete de primeira página, que deu ao então governador Jader Barbalho o pretexto para demitir o “prefeito de botas”, que nomeara, por se encontrar com seu maior adversário político de então, sem o consultar, antes, nem avisar, depois.

4 – Nunca fui “escudeiro” de Romulo, na companhia de quem raramente estive fora dos limites do jornal, nem jamais exerci “funções de mando” na empresa dele. O máximo a que cheguei, como mostrará o exame da minha ficha funcional, foi ser redator ou articulista (nunca escrevi nem mesmo um editorial). Sempre estive na posição de repórter e colunista, antes e hoje, sem ocupar qualquer função de mando nas organizações do grupo Liberal. Não tenho nem jeito para dar ordens.

5 – Saí duas vezes da empresa por não aceitar censura, numa límpida divergência editorial. Na primeira vez, eu já em A Província do Pará, Romulo foi me buscar para voltar a O Liberal. Antes que ocorresse a segunda vez, em 1986, fui ao Rio de Janeiro, onde ele se recuperava de um terrível tratamento de saúde, para entregar-lhe todas as minhas funções na empresa naquele momento: o Repórter 70, um programa de televisão e minha coluna.

Queria poupá-lo da pressão dos maiores alvos da minha crítica na ocasião: o governador Jader Barbalho, o senador Hélio Gueiros e o factótum Henry Kayath, que se aproveitavam da amizade com Romulo para tentar me calar. Indiferente aos meus argumentos, ele não aceitou meu pedido de demissão e me mandou voltar com tudo o que eu lhe havia levado.

Continuei no meio de um tiroteio pesado, até que ele vetou um artigo meu, menos contundente do que vários outros que eu já havia escrito. Tivemos então nossa maior discussão. Eu peguei meu boné e fui embora. Nunca fui demitido em toda a minha carreira profissional, de 35 anos. Sempre tomei a iniciativa de sair quando a situação se tornasse inaceitável para meus princípios. Quem não quiser acreditar que investigue. Aliás, pode checar tudo o que disse até aqui.

E mais não digo sobre o cometimento in folios do publicitário Cavalcante porque eu mesmo me pergunto se vale a pena. E eu mesmo, como naquela piada, me respondo que não vale. Mas admito que pensem o contrário e digam o contrário. Não tenho a veleidade de “corrigir” a posteriori a história que me desagradar, como faz o homem da conta de propaganda do governo Edmilson. Um tartufo tingido de vermelho, envernizado de cultura.

Discussão

8 comentários sobre “A história na chapa quente (49)

  1. 2011 ou 2001?

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    Publicado por Jonathan | 20 de janeiro de 2017, 11:16
  2. Talvez a melhor história seja a do próprio Edmilson Rodrigues sobre o que o levou a abandonar o PT.

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    Publicado por Luiz Mário | 20 de janeiro de 2017, 11:29
  3. E esse teu “amigo” Cavalcante? Continua faazendo campanha para o Ed?

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    Publicado por Jose Silva | 20 de janeiro de 2017, 16:07
  4. Rômulo Maiorana, o pai, foi um importante personagem do cenário paraense no século XX. Seria interessante, que o senhor professor Lúcio, escrevesse mais sobre esse homem tão proeminente, mas desconhecido dá maioria dos paraenses

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    Publicado por Hiran Martins | 20 de janeiro de 2017, 23:59

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