A hora da história
depois de FHC
(Artigo publicado no Jornal Pessoal 291, de setembro de 2002)
Os ricos já ganharam muito, agora é a vez dos pobres.
Esta teria que ser a palavra de ordem do candidato a presidente do Brasil ajustado com o seu tempo. Não importa a filiação partidária ou ideológica desse candidato: se ele for capaz de ver, o que perceberá de mais dramático e grave na atual situação brasileira é a brutal concentração da renda, incomparavelmente maior do que a de qualquer outro país ainda com aspiração a desenvolvimento no planeta.
Como o dinheiro está patologicamente concentrado em poucas mãos, a vigência da lei não escrita determinante nessas situações (só ganha dinheiro quem tem dinheiro) fez os juros alcançarem posição recorde mundial. O resultado é mais concentração de renda. O nível das desigualdades está arrebentando o Brasil.
Não era esse o desdobramento previsível do Plano Real quando o professor Fernando Henrique Cardoso assumiu o comando da nação, em 1994. Ele tinha nas mãos o mais inteligente tratamento contra inflação crônica já concebido em qualquer parte do globo em qualquer tempo. O símbolo dessa era de moeda estável e tendência a formar poupança era o frango.
Ou seja: combinava-se uma sofisticada terapia de tratamento das complicadas e nervosas engrenagens financeiras com o propósito de permitir aos milhões de deserdados realizar a revolução capitalista, passando a fazer parte do mercado. Seria o fim daquela pitada de humor negro, segundo a qual quando pobre come frango, um dos dois está doente.
Cidadão respeitado e intelectual conceituado, Fernando Henrique Cardoso podia e devia ter envergado a indumentária da transição. Cabia-lhe fazer o Brasil passar de uma fase de caos, anarquia e irracionalidade para entrar numa trilha de progresso, ponderada por um valor que havia deixado de ter valor no país: o trabalho.
Ele tiraria das preocupações domésticas a angústia de antecipar um amanhã imprevisível, dando confiabilidade à moeda (na verdade, fazendo-a finalmente existir). E fortaleceria a ossatura do país para que a atividade produtiva nacional pudesse encarar os desafios da concorrência e da competitividade no cenário mundial, criando excedentes do consumo local para exportá-lo.
O elemento subjetivo
Homem de uma vaidade doentia e de um apetite pelo poder incontrolável, FHC refez os termos do acordo que assinou com o povo através da retumbante vitória no primeiro turno contra o metalúrgico Luis Inácio Lula da Silva. Refez, é claro, unilateralmente. Vendeu a alma a Mefistófeles pela reeleição. Pagou o novo mandato de quatro anos com uma espiral financeira simplesmente inacreditável.
Basta uma agência de classificação novaiorquina aumentar o chamado risco Brasil, com um intolerável arbítrio, que lhe permite deitar (o verbo é outro, mas este é um jornal de respeito) regras contra os fatos objetivos (ou as provas dos autos, como diria um advogado), ou então um boato tocar fogo em especulações que botam o câmbio para correr, e precisamos gastar não algumas dezenas de milhões, mas alguns bilhões de dólares para conter a sangria.
Estes ciclones, derivados de ventiladores domésticos, dão uma medida da vulnerabilidade deste gigante adormecido – de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e 180 milhões de habitantes, com PIB superior a um trilhão de dólares – diante dos Salomon, Merryl et caterva de Wall Street ou da City de Londres. Gente que brinda com champanhe ao nosso culto mandatário enquanto suga o nosso sangue. Vampiros de casaca, mas vampiros.
Mesmo com a sangria financeira desatada dos últimos oito anos, porém, o Brasil ainda é um país com legítimas e justificadas aspirações de grandeza. Tem condições de pagar seus compromissos internacionais, embora deva submeter o passivo a uma auditagem independente para expurgar o que se agregou aos números como craca especulativa, inflada por balões de ensaio espúrios.
Como grande parte desse endividamento é da responsabilidade de empresas privadas, cabe ao governo, avalista de muitas dessas operações, apoiar as empresas através de indução às suas atividades produtivas, especialmente as destinadas à exportação.
Já a dívida interna pode ser facilmente enfrentada por um governo austero e rigoroso nos seus gastos, capaz de colocar em execução uma equação fiscal e econômica saudável, sem déficits e sem recessão.
O pobre ficará visível?
O Brasil não sairá do atoleiro atual se não for guiado pela diretriz de agora fazer os pobres ganharem dinheiro. É este o nosso New Deal. Uma tarefa moldada para o perfil do intelectual Fernando Henrique Cardoso, se ele tivesse realizado até o fim a crucial tarefa de estabilizar economicamente o país entre 1995 e 1998, apresentando-se outra vez em 2002, após o intervalo de um governo alternativo (pelo lado das massas ou pelo de elites menos obtusas), como um verdadeiro JK reciclado.
Investiria maciçamente em educação e saúde para o cidadão comum estar no gozo pleno de todas as suas faculdades. Adensaria a infraestrutura pública e vitalizaria as linhas de crédito oficial para que a rede da produção se alongasse e se adensasse, abrindo postos de trabalho e, sobretudo, oportunidades para os talentos no trato com o capital, a tecnologia e o mercado. Ao invés disso, FHC preferiu misturar a malícia de Getúlio Vargas com o golpismo bacharelesco da UDN, que sufocaram seu próprio potencial de grandeza.
A tarefa de redistribuir a renda já acumulada e fazer a renda nova ser drenada por novas artérias sociais, oxigenando todo o tecido da nação para que ela, com ânimo novo, encare seus desafios, é cobrada pela história do Brasil e está ao alcance de um candidato em condições de tomar o pulso do país.
Desde que ele não nos lance novamente numa aventura sem fim discernível, não seja um promesseiro incoerente, um personagem instável, nebuloso, inconfiável, mesmo quando anuncia o Éden para o comum dos cidadãos.
O Brasil precisa de um administrador corajoso, sensível, experimentado, temperado pelo saber e impulsionado pela energia, capaz de dizer as coisas com clareza e coerência, sincero e devotado ao que fez, garantia de que fará o que está a anunciar.
Em quem cabe esse perfil? Certa vez, Getúlio Vargas, um dos poucos estadistas que ocupou a presidência da república brasileira (para o bem e para o mal), falando num comício em Salvador, começou a enumerar as qualidades do candidato que mereceria seu apoio para o governo da Bahia. Elas eram tantas e tão raras que o mineiro Benedito Valadares, ao lado do “pai dos pobres”, concluiu: “Acho que ele vai apoiar o Senhor do Bonfim”.
Como boutade, a frase do político mineiro é ótima. Como conselho, péssima. Melhor seguir Galileu Galilei, recriado por Bertolt Brecht: infeliz do povo que precisa de heróis. O que lê precisa mesmo é fazer a história com as próprias mãos. Espero que esteja consciente dessa possibilidade quando usar suas mãos para digitar seu voto na eleição de outubro.
Pois é. FHC controlou a inflação, que, do meu ponto de vista, já foi um grande programa de inclusão social, porque era impossível viver naquela época. Quando chegou na hora de redistribuir os ganhos, veio a crise financeira e o FHC preferiu apelar para o business-as-usual. Perdeu popularidade e o PSDB perdeu o poder. Veio o Lula, que beneficiado por uma situação financeira melhor devido ao aumento dos preços das commodities, conseguiu redistribuir renda, mas falhou em construir a infra-estrutura tecnológica, ecológica e cultural necessárias para tornar o país mais resiliente aos futuros choques globais e ao mesmo tempo terminar de forma definitiva com a pobreza no país. Com a Lava-Jato descobrimos que esta falha deve-se principalmente a grande rede de corrupção que se insatalou no centro do governo. Antes eu pensava que era somente incompetência na execução das políticas e programas, mas eu estava enganado. Lula passou para Dilma, que conseguiu desmontar tudo o que os seus antecessores tinham feito e criou uma tal de nova economia que só funcionava na cabecinha de vento dela. Deu no que deu. Qual será o próxima onda do nosso sub-capitalismo de estado?
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E a quebra da economia mundial a partir de 2008 nos EUA?
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A corrupta elite, escudada pelos os bandidos políticos profissionais, não estava suportando imaginar que seus lucros pudessem ficar estagnados com mais uma crise estrutural do capitalismo. E ainda há muito peida-cheiroso tentando esconde esse fato. Esse o motivo da derrocada do jornalismo….
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Se ainda havia dúvida que a corrupta elite dava as cartas fazendo do Brasil o país da corrupção, o Financiador Habitual da Corrupção mostrou o melhor produto com a reeleição.
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