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Cidades, tráfico de drogas, Violência

Arquivo morto

Eram oito horas da noite. A “senhorita Andreza” caminhava com uma prima pela avenida Independência, na Cabanagem, bairro limítrofe entre Belém e Ananindeua, com 40 mil habitantes. Uma motocicleta com dois homens, sem capacete nem capuz, se aproximam. Andreza começa a correr, procurando fugir.

Está próxima da sua casa, numa das muitas vielas da região metropolitana da capital paraense. Correndo recebe na perna o primeiro tiro e cai. Está acuada, sem saída, em frente a um lava-jato. O carona desce e faz mais disparos. O último, a pouca distância, na cabeça, para arrematar o “serviço”. Com um pouco mais de sorte, ela teria chegado à delegacia de polícia, bem perto dali.

O noticiário da imprensa de Belém continuaria a ser anódino, como na abordagem da maioria dos crimes praticados diariamente numa das cidades mais violentas e perigosas do mundo. Mas a “senhorita Andreza”, de 22 anos, teve um ano e meio de vida pública. Foi famosa, à maneira dos Big-Brother platinados.

Sua biografia incluiu ser pobre, vida marginal, nem bonita nem feia. Perfil típico da periferia: roupa sumária, cabelos tingidos, rosto fortemente pintado. Uso de drogas, participação no mundo da criminalidade, linguagem estereotipada do submundo, mãe precoce, vida em comum com um criminoso, sem emprego, instrução primária – mas desembaraço, inteligência, raciocínio rápido, oportunismo, nenhum preconceito, nem moral, muito menos ético.

Com essas características, não surpreende que não tenha conseguido sair do crime nem escapar às suas regras selvagens, que desprezam a vida dos marcados para morrer por alguma violação às regras desse círculo feroz.

É claro que Andreza quis levar vantagem da fama efêmera. Mas não podia ter tido outro caminho se as pessoas que procurou ou dela se aproximaram lhe oferecessem opção? Como reagiria se, depois do vídeo “desembaçado”, alguém lhe oferecesse tratamento médico, psiquiátrico, um trabalho, bolsa escolar, creche para a filha e alguns serviços essenciais do Estado, saqueado por sua elite de nariz empinado e olhar condenatório a tudo que esteja fora do próprio umbido dourado?

Ela voltaria ao crime?

É uma resposta que Andreza já não pode dar. Numa cidade, num Estado e num país que fecha as portas solenemente e de imediato a esses desafios, a essas vidas, que se entortaram na luta por um espaço mínimo, roubado pelos atletas da alta corrupção no Brasil, é melhor esconder esses dramas num arquivo inativo, tornando-os arquivo morto.

A morte é produto barato. Está em todas as prateleiras. Sirvam-se.

Discussão

16 comentários sobre “Arquivo morto

  1. O simples fato deste blog conferir honraria a memória post mortem da Andreza, significa que ela representou o movimento revolucionário e contestatório de sua própria condição social, atuando com as forças e o discernimento que ela desenvolveu sobre si mesma.

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    Publicado por Thirson Rodrigues de Medina | 14 de abril de 2017, 12:49
  2. Vítima da vida que levava.
    De repente da única que conheceu.
    Marginalizada como muitos nesse Brasil corrupto.
    Culpa de todos nós.
    Mas a moda é de intolerância. Cada um por si.O problema é seu.
    Assim segue a humanidade.
    Segue não sabemos para onde

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    Publicado por Ronaldo Almeida | 14 de abril de 2017, 12:55
  3. A Andreza, é digna de menção. Representou a insatisfação pessoal e de sua classe social, pleiteando a eleição. O simples fato de ser lembrada neste blog, confere a sua memória post mortem a honraria humana, sem cerimonias ou protocolos, mas com toque de gratidão, qualidades eternas que a acompanharam.

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    Publicado por Thirson Rodrigues de Medina | 14 de abril de 2017, 13:01
  4. É isso mesmo, Lúcio.

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    Publicado por Edyr Augusto | 14 de abril de 2017, 14:15
  5. Lúcio, parabéns! Texto como sempre magistral, tecido pelas mãos do esmerado repórter e do engajado cronista social e ungido pela tintura poética do homem sensível que és. Só cuidado, pois nele beiras perigosamente um determinismo que quase neutraliza o conteúdo psicológico do fato, popularmente chamado de livre-arbítrio. Bom feriado.

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    Publicado por John Charles Torres | 14 de abril de 2017, 15:09
  6. Lúcio Flávio, seu texto diz tudo. Pode ser um desabafo profissional, ético,humano e verdadeiro acima de tudo.Assim que nós da classe média média sentimos as coisas neste país.

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    Publicado por Maria das Dores Santa Brígida | 14 de abril de 2017, 18:59
  7. Lucio,

    Belo texto. Infelizmente não é só a morte que está na prateleira a um preço acessível a todos.

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    Publicado por José Silva | 14 de abril de 2017, 21:28
  8. As redes sociais fizeram cair o véu da hipocrisia.

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    Publicado por Luiz Mário | 15 de abril de 2017, 10:20
  9. Parabens Lucio Flavio.

    Voce sempre pontual ao expor de forma lucida nossas miserias.

    Admiro voce, sua coragem e seu empenho incansavel em denunciá-las.
    Abraços com meu apreço sempre.

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    Publicado por Marcia Vasconcelos | 15 de abril de 2017, 14:20
  10. eu não tenho culpa por nada. as instituições brasileiras fazem do cidadão de bem um tremendo otário. rico vai ser corrupto e ser chamado de sua excelência a vida toda. pobre muito burro entra no crime e depois de batizado por apelido, se não segue as regras dos senhores do submundo morre. pergunta: quando avião, soldado, dono de boca e distribuidores vão deixar de ser vistos como coitados para serem vistos como narco-terroristas que na verdade são????????

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    Publicado por alexandre | 15 de abril de 2017, 19:03
  11. Nobre Alexandre, especialmente por você saber separar as diferenças em nossa sociedade, “entre ricos e pobres”, é totalmente possível que consiga escolhar a “terceira via”: reconhecer que parte de nós a mudança que queremos em nossa sociedade, e assim, de sol a sol, com o sabor do sal de nosso próprio suor determinarmos honestamente e livres das drogas a realização de nossos prórpios sonhos!

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    Publicado por Thirson Rodrigues de Medina | 15 de abril de 2017, 21:19
  12. Conheço uma professora de redação, muito conhecida em Belém , e que ofereceu ajuda para Senhorita Andreza .
    E recentemente publicou no Facebook lembrando o contato que ela teve com a moça .

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    Publicado por Rosi gomes | 16 de abril de 2017, 09:09

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