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Política

A história na chapa quente (108)

Sai o intelectual,

entra o operário

(Artigo publicado no Jornal Pessoal 295, de dezembro de 2002)

Fernando Henrique Cardoso é “o mais destacado intelectual entre todos os chefes de Estado do mundo”. Assim o definiu outro político e intelectual, o deputado Roy Jenkins, que se tornou lorde Jenkins de Hillhead ao receber o título de nobreza do Reino Unido.

Em outra condição, a de reitor da Universidade de Oxford, a mais antiga universidade de fala inglesa e uma das mais antigas e respeitadas do mundo, Jenkins concedeu a FHC, no mês passado, o título de “doutor honoris causa” de Oxford.

O presidente recebeu a última homenagem do mundo acadêmico internacional, antes de deixar o cargo que ocupou por longos oito anos, carregando outros 17 títulos honoríficos semelhantes, inclusive a da tradicional rival de Oxford, a Universidade de Cambridge.

A Europa o distinguiu com 10 das honrarias, a América Latina com três, o Oriente com mais três e os Estados Unidos com duas. Qual o político que pode apresentar semelhante currículo? Por outro lado, qual intelectual genuíno chegou mais longe do que FHC?

Paradoxalmente, porém, um dois mais respeitados intelectuais presentes à pomposa solenidade de Oxford considerou um avanço a substituição do invejado sociólogo Fernando Henrique Cardoso pelo operário Luiz Inácio Lula da Silva.

Desapontado com o balanço da “era FHC”, o historiador Eric Hobsbawn, um dos oxfordianos mais conhecidos no momento, preferiu apostar sua esperança no governo que vai começar. Embora com uma ressalva: Lula poderá corrigir as distorções deixadas por FHC, mas é pouco provável que leve esse avanço até o umbral do socialismo. Ou quase impossível.

Em 1994 Hobsbawn talvez tenha ficado mais entusiasmado do que agora. O intelectual que conquistava a presidência do país líder da América do Sul e uma das mais pujantes nações do planeta, já no primeiro turno, era um intelectual capaz de ombrear com o próprio historiador britânico.

A marca do intelectual

Fernando Henrique foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a ler por inteiro O Capital, de Karl Marx, no original, junto com uma turma que voltaria a se reunir no Cebrap, o centro de pesquisa criado em 1969, com o suporte principal da Fundação Ford, para ser o principal centro de reflexão alternativa ao regime militar.

A “teoria da dependência”, carimbada por Fernando Henrique juntamente com Enzo Faletto, pode ser uma teoria de pé quebrado, de originalidade tão duvidosa quanto sua consistência, mas é o produto de uma empreitada intelectual considerável. Quem teve a oportunidade de assistir a aulas ou palestras do professor de sociologia sabia que para enfrentá-lo era preciso ter tutano na cabeça.

Do outro lado estava alguém que realmente lia o que citava, citando com graça e imaginação, embora o estilo se tornasse muito pesado ao passar da oratória para o papel. FHC nunca escreveu com clareza. Mas depois de enfrentar a tortuosidade do seu texto, ganhava-se em conhecimento.

Em 1960, Fernando Henrique escolheu um livro de Florestan Fernandes (Mudanças Sociais no Brasil) para inaugurar a nova fase da “Corpo e Alma do Brasil”, coleção da editora Difusão Europeia do Livro da qual era diretor. O livro se enquadrava no propósito de rever as técnicas de análise e interpretação da realidade brasileira “que vem caracterizando o desenvolvimento recente das ciências humanas no Brasil”.

Em 1974 Florestan Fernandes incluiu Fernando Henrique entre os “colegas e amigos a quem estive ligado mais intimamente, durante vários anos, na aventura comum de vincular a investigação sociológica à transformação da sociedade brasileira”, aos quais dedicou o livro A Revolução Burguesa no Brasil.

Naquele momento FHC estava começando a entrar na atividade político-partidária. Florestan seguiria o caminho, mas não iria além de deputado federal. Seu amigo e colega prosseguiu até o posto máximo. Se ainda estivesse vivo, Florestan partilharia a desilusão de Hobsbawn?

Não se pode dizer que Fernando Henrique haja embotado sua brilhante inteligência ao ocupar a presidência da república, ou que a “era FHC” caiba no catecismo de anátemas como os que o terrível polemista Gondin da Fonseca reservava, na república de 1946, aos entreguistas e lacaios do imperialismo (na versão atualizada, da globalização e do neoliberalismo).

O governo de Fernando Henrique foi mais complexo do que um título sintético e categórico é capaz de enquadrá-lo (o que, se se consegue fazer, é ao custo da simplificação e da arbitrariedade).

Na entrevista de despedida que deu a Roberto Pompeu de Toledo, em generosas páginas que a revista Veja lhe franqueou, o sociólogo Fernando Henrique traça um perfil mais rico do presidente FHC do que seus adversários estão dispostos a lhe conceder.

É verdade que os prognósticos que faz do sucessor são mais convincentes do que o auto-retrato, cheio de retoques e fantasia, mas ainda assim o que sobra de substantivo entre as cascatas de adjetivos é o bastante para uma avaliação mais densa desses oito anos.

A arte da política

Ainda assim, um intelectual tão verdadeiro e denso quanto Fernando Henrique não conseguirá reprimir um halo de desalento ao final de um balanço do que ele realizou. O cidadão Fernando Henrique Cardoso perdeu a rara oportunidade que a história lhe proporcionou de ser um estadista, de dar ao título que o chancellor de Oxford lhe concedeu um sentido prático, um conteúdo nobre.

Se Clemenceau tinha motivos para afirmar que a guerra era um assunto sério demais para ser deixado nas mãos dos militares, o povo se achará no direito de pensar que a política é perigosa demais para ser entregue a intelectuais.

As miçangas e balangandãs do poder foram mais fortes do que o compromisso da consciência, que deve ser o patrimônio inalienável de um intelectual. Elas levaram Fernando Henrique Cardoso a cometer os dois maiores erros do seu governo, na metade do primeiro mandato: buscar a reeleição, e já para si, e manter a irrealidade da âncora cambial, sustentando a insana paridade real-dólar.

Do primeiro erro resultaram ondas de fisiologismo, corrupção, populismo, acertos espúrios, conciliação. Do segundo, dezenas de bilhões de dólares drenados para grandes grupos financeiros e espertalhões agindo como intermediários, ou como classificadores de risco para investimento (e, por extensão, seu rendimento).

O governo perdeu a coerência do programa e o discurso do presidente passou a ser uma peça retórica. A cabeça do intelectual se dissociou dramaticamente da mão do governante, criando uma esquizofrenia tal que permite ao dr. Jekyll receber com todo merecimento as honrarias que Mr. Hyde põe a perder no encontro de contas com a verdade.

Em 1994 os colegas intelectuais de Fernando Henrique Cardoso tinham o direito de esperar que ele realizasse o que, ao final, mostrou que não estava na órbita do seu interesse fazer: uma reforma profunda e consistente para modernizar o Brasil sem sujeitá-lo à carapaça de injustiça social que agora o cobre de infâmia, e a um preço tão caro.

O “grand finale” da ópera tucana talvez tenha sido mesmo a vitória de Lula, que chega ao poder como um verdadeiro homem do povo, disposto a tirar do caminho personagens como FHC, a quem caberia o papel de Antônio das Mortes na encenação barroca de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Por ironia, porém (como Hobsbawn não deixou de perceber), para poder sentar no trono que foi de FHC, um verdadeiro homem do povo tem que deixar do lado de fora do palácio o compromisso que Fernando Henrique levou consigo quando lá chegou, oito anos atrás, como se fosse cumpri-lo, sabendo, porém, que era apenas um sofisticado cartão de apresentação no universo das idealizações e figurações, no mundo dos conceitos.

Ou seja: neste momento de transe e transição, o Brasil está mudando para que nada mude? Desta vez, quem sabe, a surpresa, se houver, pode vir a ter um gosto diferente do que aquele que nos deixa Fernando Henrique Cardoso. Um gosto bom de mudança para valer. Não este travo de frustração que compromete a degustação coletiva dos títulos personalíssimos de sua excelência, o ex-presidente.

Discussão

Um comentário sobre “A história na chapa quente (108)

  1. A reeleição consolidou o Financiamento Habitual da Corrupção, na História.

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    Publicado por Luiz Mário | 22 de abril de 2017, 20:27

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