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Política

Lula e a lama

O maior desafio para os que apostam novamente em Lula como opção de futuro para o Brasil é livrá-lo da mancha de corrupto. Como bandeira de esperança e símbolo de mudança, Lula não pode aparecer em público associado a assaltantes do erário e beneficiário de medias que pareciam ter sido adotadas como em favor do povo, que o elegeu por duas vezes presidente da república e referendou a estranha escolha que fez para a sua sucessão. Ele não pode aparecer como fraude.

A saída é voltar a insistir na tese do golpe, já não mais apenas – nem principalmente contra Dilma Rousseff: agora seria diretamente contra ele, para impedir – artificialmente, pela força de uma manobra parlamentar – que o povo lhe dê um inédito mandato presidencial.

Os autores da conspiração anti-Lula (e, secundariamente, como sempre, anti-PT) são os “endinheirados e candidatos a endinheirados”, na interpretação do economista Luiz Gongaza Belluzzo, professor aposentado da Universidade de Campinas, em São Paulo. Em entrevista ao jornal da Unicamp ele reafirma sua condição de ideólogo do petismo, com um apoio tão decidido que compareceu a uma das sessões do processo de impeachment de Dilma para fazer a defesa da ex-presidente e agora o faz investir contra Michel Temer, o ex-vice-presidente dela, até então à sombra das críticas.

Ela exercia “um mandato comprometido com um certo projeto de sociedade, com um projeto de avanço social’, que os ricos já não estavam dispostos a tolerar, como toleraram os oito anos de Lula. Indiferentes aos bons resultados da economia diante do relativismo da crise internacional e de outras pressões (o fator externo como um eterno bode expiatório), os ricos tramaram para golpear a dona do principal mandato popular do país e colocar no Palácio do Planalto um fantoche para executar as providências antissociais que Dilma freou ao depor Joaquim Levy, por ela mesma nomeado ministro da Fazenda e sabotado mais por colegas de governo do que pela ineficácia de suas ideias). Ignoraram que os efeitos negativos de 2014 foram resultado da tentativa da petista de atender aos reclamos do mercado, à frente do qual estão os insaciáveis bancos. Mas, sobretudo, dos gastos abusivos que fez para se eleger, ainda assim por minúsculos 3% cravados sobre o equivalente (na essência, embora oposto na aparência) tucano Aecio Neves

Belluzzo sofisma. De forma sofisticada, mas sofisma. De fato, a elite aceitou Lula sem tomá-lo como um dos seus pares. Mas Lula fez o possível e o impossível para ser um igual à elite, que, ao contrário do que sustenta o economista, sempre teve um projeto de poder, às vezes bem articulado, só que favorável apenas a ela, terrível para o país.

Bitolado por sua visão de curto prazo, sempre deambulante ou ao sabor das ondas da conjuntura, desligada das raízes históricas do cotidiano (nunca ninguém o viu lendo um livro atrás delas, já que nem a sua poderosa intuição poderia fornecê-las), Lula procurou ingressar nesse mundo, que não era o dele.

Incorporou a cultura dessa elite (o que inclui tentar se tornar um gourmet e um enólogo, aí, sim, de forma tão falsa ou postiça quanto muitos dos endinheirados de coluna social). Deu-lhe o dinheiro mais barato da praça, com juros pagos pelo tesouro e mesmo o principal por ele fornecido, para serem competitivas no mundo.

Conseguiu a façanha de tornar o Itaú maior do que o Banco do Brasil (com a retribuição ideológica dos filhos do banqueiro Walther Moreira Salles na edulcoração da biografia do grande timoneiro nacional), a JBS a maior produtora de carne e a Odebrecht a maior empreiteira do continente. Pagou o pedágio social com o bolsa família e equivalentes, sossegando o leão (que é manso), embora o dragão do crime organizado só tenha crescido e a violência transformado o Brasil num campo de guerra não oficializada. Fabricou a maior quantidade de bilionários brasileiros de todos os tempos, inclusive o 8º homem mais rico do planeta. Formou uma empresa fictícia para fazer com que o Pré-Sal colocasse o Brasil no topo dos países produtores de petróleo.

Nesse mundo de tratativas de bastidores e negociação de porões obscuros, no qual a corrupção passou a ser veículo de um projeto de poder (que conseguiria durar 13 anos, tempo demais para achar que a poderosa e desalmada elite brasileira a toleraria se executasse o projeto inventado por Belluzzo), sempre com vários intermediários, sobretudo políticos (1.800 dos quais comprados pelos irmãos Batista), inevitavelmente a bandidagem prosperaria e os mal feitos se tornaria rotineiro. Foi um choque para o povo,

O efeito? Lula ter o maior índice de rejeição entre todos os aspirantes à presidência na eleição do próximo ano. É um número gordo demais para a elite nele caber, mesmo com sua ação midiática através da TV Globo (pretexto para a ação totalitária do Estado na seara das comunicações), seu dinheiro, sua audácia. Quase 60% de rejeição é produto também de uma realidade que os inimigos de Lula não conseguem agravar tão exageradamente quanto diz Belluzzo nem os correligionários do ex-presidente não são capazes de desfazer de fato.

Tratam então de voltar a histórias da carochinha, reapresentando a realidade complexa e desnorteadora sob a roupagem de uma teoria pronta e acabada, rígida e dogmática, de aparência tão coerente quanto frágil é a sua substância. Com a realidade de hoje, Lula é capaz de vencer o 1º turno em 2018, mas sua situação se inverterá num 2º turno, quando a escolha será plebiscitária e o eleitor, infelizmente, mas como sempre, terá que decidir entre o ruim e o menos ruim – se não for entre o pior e o “menos pior”.

Não será culpa do eleitor. O Brasil mudou de fato, embora ninguém parece ser ainda capaz de decifrar a nova criatura (ou as novas, já que a unidimensionalidade acabou). Nem aqueles que querem domar o potro pelas mesmas técnicas, a seu serviço, como Lula e seus adversários potenciais, ou fantasia-la desnaturando os fatos, como Belluzzo.

Para que o leitor tenha uma boa exposição do cantochão que os lulistas entoarão ao longo da temporada que antecede a eleição de 2018, reproduzo a íntegra da sua entrevista.

Professor, quão prejudiciais têm sido para o Brasil – e a economia brasileira em particular – as inúmeras idas e vindas da “novela Temer”?

Esta situação em que foi enfiada a economia brasileira teve origem em um inconformismo das classes dirigentes e dominantes do Brasil com o que seria mais um mandato comprometido com um certo projeto de sociedade, com um projeto de avanço social. Aí se manifestou o caráter mais que conservador, o caráter reacionário da sociedade brasileira. Um segmento que tolerou, mas nunca absorveu a eleição de um metalúrgico, um homem das classes populares como presidente do país. Para mim, aí está a origem da situação atual.

Isso precisa ser explicado com certo distanciamento. Quando terminou a eleição de 2014, com a vitória da presidente Dilma, o mercado que exprime esse sentimento do qual estamos tratando, o mercado financeiro principalmente, começou a alardear um desastre econômico que não existia. Os dados mostram que isso era uma mentira. A economia vinha de uma desaceleração forte nos anos 2012 a 2014, mas ainda estava com crescimento positivo. Durante todo o período, exceto 2014, houve superávit primário. Em 2014, houve déficit de 0,6, que se comprado ao desempenho dos demais países, seria considerado um sucesso numa fase de desaceleração econômica.

Nada disso foi levado em conta no processo de impeachment?

Aí entra no jogo um fator importante que é o peso desses grupos na sociedade, que no fundo exigia um ajuste, alegando que a situação fiscal era desastrosa, o que, vou repetir, era mentira. Isso ficou expresso na escolha de Joaquim Levy como ministro da Fazenda. Ele executou o que estava no projeto desses grupos. A expressão desses interesses está na macroeconomia que foi difundida não somente pelos economistas, mas também pela mídia.

Todo mundo comprou a ideia de que era preciso fazer um ajustamento. As medidas adotadas, porém, provocaram um grande desajustamento. Qual foi a sequência? Um choque de tarifas, coordenado com o aumento da taxa de juros. Com o choque de tarifas, o aumento da taxa de juros e o corte de investimentos públicos, a queda no desempenho da economia atingiu 3,5% em 2015 e mais de 3% em 2016. Então, o impeachment da presidente sofreu influência desse contexto. O impeachment foi decidido a partir de alegações muito levianas e insubstanciais.

O senhor defendeu a presidente Dilma durante o julgamento no Senado …

Sim, eu fui lá defender a presidente. Ainda que eu tivesse dito que discordava da maneira como ela fez as coisas, eu fui dizer que as medidas não eram motivo para o seu impedimento. Foi uma leviandade o que fizeram. Isso tem a ver com a forma como o poder real no Brasil – como parte da sociedade civil e a mídia – resolveu abraçar o impeachment porque considerava intolerável ter mais quatro anos de um governo popular. Isso foi o que a gente poderia chamar de revolta dos enriquecidos e dos candidatos a enriquecidos. Eu não vou falar em elite porque o Brasil não tem elite. O Brasil tem ricos, em geral incultos e acostumados a dizer barbaridades sobre tudo. Essa gente foi responsável pelo impeachment.

No fundo, isso não teve nada a ver com política econômica e combate à corrupção. Essa é a essência da constituição deste governo, que é ilegítimo. E cuja ilegitimidade está produzindo efeitos deploráveis.

A democracia não é suficiente para regular esses conflitos de interesses?

A democracia e o estado de direito não são exatamente os valores que essa gente que foi às ruas de camisa amarela prega. Tanto que eles vão à rua para pedir também intervenção militar. Eles não têm nada a ver com a democracia. Eles se colocam fora desse projeto democrático. Não foi fácil redemocratizar o Brasil. A democracia é o regime dos fracos. É através dela que os fracos podem se exprimir. Em geral, essa parte da sociedade tende a reproduzir episódios de autoritarismo.

Nós estamos vivendo uma situação ditatorial. As pesquisas de opinião demonstram o que a população pensa, e eles fazem justamente o oposto. O Brasil repete mais um episódio de rebelião dos que têm poder real contra a possibilidade de avanço das camadas populares. É simples assim.

A recém-aprovada reforma trabalhista seria um desses efeitos deploráveis que o senhor citou?

Sem dúvida. É ridículo o governo fazer a afirmação de que essa reforma gerará emprego. No mundo inteiro as reformas trabalhistas redundaram em precarização do trabalho e perda de qualidade de vida dos assalariados. Isso aconteceu na Espanha, Itália e Portugal, sendo que Portugal melhorou um pouco recentemente. No fundo, as reformas trabalhistas são realizadas com o argumento de se ganhar competitividade. Só que o ganho de competitividade não se realiza e você acaba precarizando o emprego. Isso enfraquece o poder de barganha dos trabalhadores. Para se colocar o negociado sobre o legislado seria preciso ter uma estrutura sindical diferente, fortalecida.

E quanto à reforma da Previdência?

Nós temos questões no sistema previdenciário brasileiro, como as diferenças gritantes entre o regime próprio, que é dos funcionários públicos, e o regime geral. Há uma distância muito grande entre eles, e isso é um fator que aprofunda as desigualdades. Outra questão é que nós estamos avançando na direção de uma transformação tecnológica e econômica que promoverá a redução da demanda de trabalho. Isso nos obrigará a criar um sistema previdenciário não para os mais velhos, mas para os que estarão empregados, mas não terão renda suficiente para comprar os produtos que a indústria gerará. Então, nós teremos além de um problema econômico, também um problema social. Nós vamos ter que criar um programa de renda básica de cidadania, como defendia o ex-senador Eduardo Suplicy. O debate sobre esse tema está ocorrendo no mundo inteiro. Nós, porém, estamos fazendo uma coisa muito atrasada.

Não é um futuro alentador, não é?

Eu estava conversando ontem com meu filho, dizendo que estava preocupado com o futuro dele e do meu neto. Não quero parecer pessimista, mas disse que ele terá que lutar para manter as condições de vida decente para um cidadão brasileiro. O governo já está dizendo que se não conseguir aprovar a reforma da Previdência, terá que cortar recursos da educação. Isso é de uma insensatez e de um desconhecimento total de como funciona o orçamento numa sociedade democrática. O orçamento é um âmbito em que você decide quem paga e quem recebe.

Aqui, quem paga para si mesmo são os mais pobres. São eles que dão a maior receita fiscal através dos impostos indiretos. Os ricos pagam pouco. Mas alguém discute isso? Não há interesse. O que me mais me preocupa é esse arranjo social e a manifestação de poder dessas camadas que não têm identidade com a população mais pobre. O rentismo, aqui, se dá numa relação de predação. A ordem é tirar tudo o que puder e, de preferência, transferir para um paraíso fiscal ou ir para Miami. Isso é inequívoco, é o ponto central.

Em 2018 nós teremos eleições gerais, exceto no plano municipal. É possível ter esperança de mudanças a partir desse pleito?

É uma esperança. Esperança, por exemplo, de recuperação sobre a economia. Isso vai exigir que tenhamos candidaturas que sejam capazes de fazer isso. Acho que temos. Não se vai eliminar o conflito, mas a eleição dará legitimidade para o governo tomar as decisões que precisam ser tomadas. Hoje, o governo não tem legitimidade e adota medidas que são contra as aspirações da maioria da população. Nesse sentido, a eleição é uma esperança. Nesse quadro, fica muito mais difícil fazer com que o mercado financeiro e seus asseclas imponham uma política econômica ao governo.

Aliás, é preciso ter claro que é um movimento de parcela da sociedade, mas que se expressa através de duas instituições: mercado financeiro e mídia. Enquanto não tiver democratização da mídia, fica difícil. Não se trata de propor a estatização da Rede Globo. É preciso criar pontos divergentes. Nenhum país do mundo pode ter democracia com uma concentração midiática deste tamanho.

Discussão

13 comentários sobre “Lula e a lama

  1. Excelente pupilo, da corrupta elite, esse menino Lula, não?

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    Publicado por Luiz Mário | 6 de agosto de 2017, 12:50
  2. Ei Lucio…vc já pensou em ser colunistas do site O antagonista!

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    Publicado por Norman | 6 de agosto de 2017, 13:53
  3. Daqui para frente cada partido contará uma narrativa que misturará 1% de verdade com 99% de mentira. Vão usar e abusar de fake-news distribuidas pelas redes sociais. As narrativas serão como aquelas tubainas feitas em fábricas de fundo de quintal que prometem alta concentração de sucos de fruta mas que são na verdade água suja com açucar.

    O PT já está ensaindo a sua narrativa com o Lula como mártir no centro e um conjunto de outras mentiras como idéias secundárias. O PSDB já lançou a sua narrativa com as últimas entrevistas do Tasso. O enredo será de que o partido errou mas que quer se corrigir, recuperar a sua história, como se isso fosse possível. O PMDB já lançou o tal de Brasil Novo, que combina pragmatismo econômico, que segundo eles visa recuperar empregos, com um conjunto enorme de falcatruas para se proteger da Lava Jato. E por ai vai.

    Ano que vem a população será bombardeada com estas mensagens, todas mentirosas, mas muito bem encenadas e pasteurizadas para consumo imediato. No final, a poulação decidirá pelo continuismo de um dos três. No final das contas nada mudará. Tanta briga por nada. Somos conservadores, no sentido negativo da palavra, pois gostamos mesmo deste lixo que se acumula em Brasília desde o início da redemocratização. Esse é o nosso Brasil, o país do futuro…um futuro que permanecerá cada vez mais distante a cada decisão equivocada que fazemos na hora de votar.

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    Publicado por Jose Silva | 6 de agosto de 2017, 18:33
  4. Com as bênçãos da social democracia, prezado José.

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    Publicado por Luiz Mário | 6 de agosto de 2017, 19:49
    • Socio-democracia é uma boa posição politica. Basta ver o exemplo dos nórdicos. Não se pode dizer que no Brasil há um partido realmente socio-democrata. Creio que nem um partido socialista ou mesmo liberal. O que temos são apenas partidos fisiológicos.

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      Publicado por Jose Silva | 6 de agosto de 2017, 21:40
      • Apesar de sua pessimista, o comentário está no alvo certo. Apenas tenho, ainda a esperança, que algum fenômeno nos tire desse círculo vicioso de desastres políticos inaugurados por Getúlio Vargas em sua tomada do poder.

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        Publicado por JAB Viana | 8 de agosto de 2017, 08:31
      • Resumiu tudo. Só existem partidos e políticos fisiológicos.

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        Publicado por Jonathan | 8 de agosto de 2017, 11:16
      • Sempre há alguma esperança, mas ela requer uma grande transformação de como os brasileiros tomam suas decisões na hora de voltar. Espero que os eventos dos últimos anos tenham servido de aprendizado. Entretanto, somente saberemos se houve aprendizado algum nas próximas eleições. Por enquanto, nenhuma mudança significativa no status quo foi detectada pelas pesquisas. Isso explica o meu pessimismo!

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        Publicado por Jose Silva | 8 de agosto de 2017, 11:49
  5. Parece que a “grande” questão dos sociais-democratas tupiniquins é não perceber que aqui só chegam os bagaços….. coisa que a falida retórica (ou seria a sociologia da reeleição?), deixa pra lá!

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    Publicado por Luiz Mário | 7 de agosto de 2017, 18:35
  6. As eleições ainda estão distantes, mas acredito que os antigos messias não terão vez no segundo turno das próximas eleições. Será uma eleição de alianças e vencerá o candidato que melhor estiver alicerçado em bases sólidas de apoio dos partidos. Vai lembrar a de 2002, quando vários baluartes foram caindo a cada embate ou revelação, restando o cavaleiro da esperança versus tucanos desgastados perante a conjuntura econômica do momento, que lhes era desfavorável, sendo que o candidato emplumado não tinha carisma e não queria o apoio explícito de FHC, rejeitado após oito anos no poder.

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    Publicado por JAB Viana | 9 de agosto de 2017, 01:09

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