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Cultura

O artigo censurado

Publico o artigo de Paloma Franca Amorim censurado em O Liberal.

Necrópole

Cheguei e achei tudo muito ressecado de gente. A Luahzinha falou: bem vinda a Belém novamente, Paloma, a Necrópole da Amazônia. A gente riu de nervoso no carro enquanto procurava algum lugar para comer porque eu estava totalmente brocada de fome depois de viajar ao longo de quase seis horas esparramadas em itinerários de ônibus por São Paulo, avião e depois na carona da Luana do aeroporto de Val-de-Cans para o centro. Passamos em frente ao Horto, não acreditei quando vi os bares fechados, a Luah disse que naquele dia devia ter toque de recolher nas periferias.

A gente fez um lanche na Praça Amazonas, pertinho de onde eu morava, meio Jurunas, meio Batista Campos, dependendo do gosto do cliente. Quando era para parecer humilde a gente dizia viver no Jurunas, quando era para parecer rico a gente virava morador de Batista Campos. Sempre foi assim, minha família na divisa entre uma classe média remediada e uma semi-pobreza de nossas origens rurais, negras, analfabetas, historicamente espoliadas. Isso foi tema de discussão sobre autoria e identidade na Roda de Mulheres Escritoras organizada pela Carol Magno para que as autoras da terra debatessem suas produções e a questão da XXII Feira Pan Amazônica do Livro que compulsoriamente nos excluiu em nome de mais um estúpido ato de celebração dos cânones feudais usurpadores de nossas narrativas há séculos.

Estávamos na roda eu e as poetas Márcia Kambeba, Roberta Tavares, Shaira Mana Josy e a Amérika Estérika, trocando visões sobre o contexto literário no Pará e suas dimensões estéticas e políticas. Claro que me desaguei. Aqui em Belém eu choro muito. Em São Paulo sou um coração de pedra. É triste ter que parecer forte o tempo todo numa cidade que não é a nossa.

Tava melancólica também porque no sábado tinha ido à casa da Maria Lúcia Medeiros, minha amiga/mãe/mestra das letras, em Mosqueiro. Fiquei revolvendo a Necrópole que a Luah falou no início da minha estadia aqui.

Pensei em todas as mulheres que já enterrei nessa cidade, presentes nas histórias que permanecemos a desnudar e convocar às partilhas. Carregamos esses sarcófagos urbanos  nas costas e, abaixo de nós, as pessoas pobres também o fazem. Em breve estaremos todos esmagados. No Jurunas e em Batista Campos.

O Cozinha de Bistrô, restaurante da Rita e da Clarisse onde lancei meu livro em setembro passado, está fechando na Campina. Não há condições de prosseguir com o estabelecimento. Fizemos uma despedida, tiramos fotografias para preservar esse momento de passagem e transformação – mais um.

A cidade parece nos expulsar. Ao mesmo tempo a chuva do final da tarde nesse nosso outono amazônico alimenta ainda a força de uma esperança quase morta que se alivia do calor.

Eu vejo a baía do Guajará das bordas do meu copo de cerveja no pôr-do-sol do Ver-o-Peso. O rio dos pescadores, dos urubus, das imundícies, do reflexo de um sol de torrar miolos que alimenta a beleza do movimento das águas. Esse rio no qual minhas vistas se banham é meu endereço primeiro.

Território de chacinas, perseguição política, provincianismo.

Mas não me espanto quando vejo que resistem os sobreviventes. Respiro fé para injetar temperança nos pulmões, porque – apesar de tudo – tudo faz parte de mim. A Necrópole da Amazônia, Belém do Pará, ainda não deixou de ser o cemitério onde eu nasci.

Discussão

24 comentários sobre “O artigo censurado

  1. A Arte RE-agindo contra a corrupta elite.

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    Publicado por Luiz Mário | 16 de maio de 2018, 18:06
  2. Que precipite chuvas de água benta sobre Belém. Para confortar as famílias e vítimas do holocausto em andamento.

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    Publicado por Thirson Rodrigues de Medina | 16 de maio de 2018, 18:29
  3. Eita moça pra expressar sofrimento e recalque. É um espanto um jornalista do quilate do LFP dar ibope pra essa… sei lá, criatura autodestrutiva quem sabe…
    Que fique por s. paulo e não volte mais para o inferno que ela elegeu, antes que muitos belenenses prefiram ter perdido os dois olhos. que vá escrever suas lamúrias ideológicas para o sindicato dos metalúrgicos do abc
    Parabens a o liberal

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    Publicado por Anônima | 16 de maio de 2018, 19:55
    • Com toda sinceridade e o máximo de rigor que possa ter, considero a Paloma uma das mais importantes escritoras paraenses em atividade. Fiquei fascinado pelos textos dela m O Liberal. Foi com honra que apresentei o primeiro livro dela, publicado em SP. Divergimos, mas também a respeito como cidadã. Ela faz por merecer o respeito de todos. Neste espaço há espaço para todo tipo de crítica e liberdade plena de expressão. O exercício desse direito impõe também o respeito a todas as pessoas, em especial àquelas de comprovado valor no uso das suas faculdades, como Paloma.

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      Publicado por Lúcio Flávio Pinto | 16 de maio de 2018, 20:19
  4. Machado de Assis, que era negro, venceu a muralha e o ranço escravocrata de seu tempo, e o fez acima de tudo pela força de seus avantajados dotes literários. Qualquer outra força que o tenha ajudado foi menor do que sua capacidade de engendrar e desnudar mundos através das palavras. Sua obra tem força e autoridade para resumir essa conversa assim: “Lágrimas não são argumentos”.
    Não sou uma limalha do grande Machado, mas acredito que consigo cortar essa lenha nos seguintes termos: “Se uma pessoa no ardente desejo de ser respeitada ou reconhecida, tiver que apelar para sua cor, religião, grau de instrução, poder econômico, gênero, opção sexual ou assemelhados, rebaixa-se da mais nobre e singular condição, a humana”.

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    Publicado por Diniz | 16 de maio de 2018, 21:57
    • Essa aspas é do Machado? Se sim, qual livro? Agradeço

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      Publicado por Daniel | 17 de maio de 2018, 08:29
      • Está fora de contexto a citação, só não vou dizer que é desonestidade intelectual porque todo mundo pode errar. Machado nessa passagem se refere ao amor e não a questões políticas. A segunda citação creio não ser dele. Ademais, minha índole se associa mais a com a de Lima Barreto, profundamente comprometido com as causas sociais e políticas atreladas ao evento da escravidão e do abolicionismo. São dois autores negros, com visões estratégicas e estéticas diferentes, ambos críticos contumazes do racismo e da mentalidade eurocêntrica da falsa aristocracia carioca do início do século XX. Dizer que Machado de Assis era um humanista – aquele que diz “somos todos humanos” e neutraliza as questões de classe, raça e gênero – é um equívoco sem tamanho.

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        Publicado por Paloma Franca Amorim | 17 de maio de 2018, 10:08
      • Palorma Franca, explique “desonestidade intelectual”. Como alguém pode ser desonesto sem que o faça por meio do intelecto? O Lúcio já tentou.

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        Publicado por Rosa Carla | 18 de maio de 2018, 12:52
    • Exatamente, Diniz. Vale a pena repetir: “Se uma pessoa no ardente desejo de ser respeitada ou reconhecida, tiver que apelar para sua cor, religião, grau de instrução, poder econômico, gênero, opção sexual ou assemelhados, rebaixa-se da mais nobre e singular condição, a humana”.

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      Publicado por Rosa Carla | 17 de maio de 2018, 16:14
  5. A censura que ela sofreu, e da forma como ocorreu, é execrável. Não concordar com o pensamento de quem quer que seja é uma coisa, agora censurar e expulsar sem aviso prévio é outra coisa. O Liberal prometeu adotar uma linha editorial digna de um verdadeiro jornal, e fez esse papelão, imagine quando ele agir de maneira errada.

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    Publicado por Diniz | 16 de maio de 2018, 22:12
    • Só se pode dizer que houve censura a partir do momento em que restar comprovado que o jornal se negou a publicar em razão de teor, e, pelo que li até agora, sequer a própria “escritora” demonstrou algo nesse sentido. Nada se viu indicando um juízo desfavorável à crônica, de desaprovação ou de discordância por parte do editor-chefe ou alguém de direito no jornal, sendo leviano concluir que o simples fato de não publicar já indica censura, cuja caracterização se dá obviamente com base em critérios morais ou políticos que tenham sido expressados, para julgar a conveniência da publicação. O que se está a ver é mera irresignação pelo demérito.

      O jornal tem todo direito de vetar publicações ao seu livre arbítrio, uma vez se tratar de empresa privada, salvo disposições contratuais, o que se presume não ser o caso. E ainda que o fosse, dever-se-ia perquirir cláusula de resilição unilateral, também nada se tendo demonstrado nesse sentido.

      Tempos atrás, o mesmo jornal passou a não mais publicar textos meus, não me tendo ocorrido jamais tratar-se de censura ao que escrevia; entendi apenas que não lhe interessava a pauta naquele momento. Obviamente o ato de censurar existe em todos os veículos de comunicação, administrados por seres humanos apaixonados por política, mas nada restou comprovado sequer de desafino com um novo contexto de zeitgeist moral, onde as pautas da militância esquerdista estão se tornando enfadonhas. O que se viu de então foi tão-somente uma apropriação política dos fatos por parte da própria “escritora”, pela falta da atenção da qual se acha merecedora. A recusa se transformou em um ato político para convocação da militância, bem como ocorreu no caso da Feira do Livro.

      E antes que a “escritora” venha a suscitar réplica com suas pautas político-ideológicas, adianto que prezo para tenha todas as oportunidades de expressar seu pensamento, para a avaliação do público em geral, que deve ter o direito de saber a quantas vai parte da mentalidade nacional, correlacionando-a aos demais fatores que nos causaram exatamente o tipo de dano social descrito no texto. A população tem o direito de acesso à raiz de seu problema.

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      Publicado por Rosa Carla | 17 de maio de 2018, 19:58
      • Rosa Carla, se é fato o que você acaba de apontar, então retiro a palavra censura que usei na postagem anterior. Faço apenas uma colocação. Creio que seria uma atitude muito admirável de qualquer empresa jornalistica informar a pessoa que escreve para o jornal que a produção textual já não mais é de interesse do grupo de comunicação. Isso não seria um ato de censura, mas sim um direito legitimo de qualquer jornal não ter mais albergado em seus domínios assuntos que não lhes interessa. Vida que segue para todos. Portas se abrem, portas se fecham. É assim.
        Agora dar um tratamento respeitoso a quem não terá mais espaço para expressar suas ideias é uma atitude minimamente sábia e salutar por parte do jornal. Não precisa bater a porta da empresa na cara de ninguém.

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        Publicado por Diniz | 18 de maio de 2018, 01:09
      • Rosa, agora você pode sinalizar interesse para ocupar o meu espaço às quartas-feiras. Talvez os leitores sintam um pouco a diferença, mas tudo bem, às vezes é assim mesmo. As pessoas aprendem a se contentar com os restos.
        Abraços da “escritora”.

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        Publicado por Paloma Franca Amorim | 22 de maio de 2018, 14:45
  6. Até agora não entendi qual a razão do Liberal ter censurado o belo artigo da Paloma. Ela simplesmente descreveu o que o jornal descreve todo santo dia. Creio que deve ter sido um erro grotesco de interpretação do editor.

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    Publicado por Jose Silva | 17 de maio de 2018, 02:33
  7. Soube no final da noite de ontem, no cinema, que Paloma Amorim tinha pedido demissão do jornal O LIberal , depois de 12 anos de “casa”, em reação indignada à censura que sofreu da crônica aqui publicada . Como não tenho face-book (por opção) , vim correndo para o blog porque sabia que você a publicaria . Mas estava sem internet …
    Lendo-a agora , me pergunto , e penso que todos/as os internautas que frequentam este blog ( especialmente as mulheres ) deveriam fazer o mesmo e muito seriamente :

    O que há de errado e ofensivo nesta crônica que nos nomeia como Necrópole da Amazônia , se todos os dias , e há várias meses e especialmente nos últimos anos , O Liberal, jornal e telejornais , O Amazônia, braço de o Liberal, O Diário do Pará e seu braço televisivo , o ” barra pesada” , ” a cidade contra o crime ” , ou seja, uma ampla e vasta crônica jornalística nos entope e nos entorpece de noticias , ordinárias e extraordinárias , da guerra que se trava contra a vida nesta cidade-metrópole , dos corpos que tombam às dezenas , centenas e em numero e frequência cada vez maiores …dos riachos de sangue que tinge os traçados da cidade , do asfalto marcado com o sangue queimado dos dias passados …e nem bem a chuva leva as machas e outras aparecem no mesmo lugar …das crianças que diariamente cercam os cadáveres que se amontam aonde sobrevivem e por onde passam…? O que há de errado , se ela apenas usou uma metáfora para dizer o que é repetido-repisado-batido ad nauseum no próprio jornal ???

    Se cartógrafos e artistas da cidade decidissem fazer uma cartografia dos assassinatos produzidos nesta guerra que domina e aniquila a vida humana de forma nesta cidade , certamente teríamos O Mapa Macabro da Metrópole da Amazônia no limiar do século XXI …E certamente apareceria algum tecnocrata da área da cultura-educação com a proposta de colocar as crianças das”escolas” estaduais-municipais da periferia para aprender a descolorir o sangue desta cartografia …e recriar uma cidade limpa , higienizada de sua auto-barbárie …e , quem sabe , daí resultaria um livro …a concorrer a um prêmio de “ilustração de literatura infantil” na próxima Feira Pan-Amazônica do Livro do Horrores …

    Bem , parece claro , que o problema não é a Necrópole mas sim a Necrópole associada à Feira do Livro , dirigida e controlada pelo super-poderoso e vitalício Secretário de Estado de Cultura do Pará Paulo Chaves , cuja demissão do cargo , já foi reivindicada diversas vezes , e em em alto e bom som ,pela classe dos artistas de teatro . Enquanto os demais segmentos desta classe permaneceram ate agora calados …o que evidentemente se constitui o sangue que nutre os superpoderes deste senhor das Feiras das Mulheres Excluídas , que Paloma denunciou amplamente nas redes sociais poucas semanas atrás .

    O Secretário de Estado Paulo Chaves não gosta de mulheres de atitude , fortes , cultas e independentes como Paloma , ele gosta de mulheres servis e subservientes , ou seja, aquelas que o servem , que são executoras das suas ideias , que materializam o que ele pensa , planeja e projeta nos seus sonhos elitistas ,marginalizantes , excludentes .

    Paloma , querida , obrigada pela sua atitude politica contundente , pela tradução em linguagem literária daquilo que sentimos cotidianamente , da denúncia de um mal que aflige todas nós mulheres , crianças, jovens, adultas, adolescentes …

    Obrigada pela sua existência e resistência literária , feminina e feminista , construída com muito suor , trabalho , prazer e humor , no contra-fluxo da pequenez humana , da arrogância e hipocrisia do poderosos donos e apropriadores ilegítimos dos recursos públicos …

    Obrigada pela sua insurgência politica na recusa/denuncia imediata dos atos dos podres-poderes que teem afundado esta terra na barbárie ..Poderes quase sempre masculinos , misógenos, fascistas .Não por acaso , os dois sujeitos envolvidos , o censor e o secretário pertencem a este mundo obscuro e retrógado da cultura patriarcal .

    Mas como dizia Cecilia Meireles , ” aprendi com a primavera a deixar-me cortar e voltar sempre inteira” . Esta é você , Paloma negra , Paloma mulher, Paloma escritora , rebelde , radical , insurgente …

    ” Entre mim e mim, há vastidões bastantes para a navegação de meus desejos afligidos ” ( Cecilia Meireles ) Essa também é você Paloma .

    Abraços ,

    Marly

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    Publicado por Marly Silva | 17 de maio de 2018, 09:07
  8. “Útero Pagão!”

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    Publicado por Luiz Mário | 17 de maio de 2018, 09:58
  9. Parabéns Paloma! Sinto-me inteiramente representada no teu lugar e razões de fala. Para além do teu singular talento, reverbera tua indignação cidadã. Agradeço ao Lúcio q nos permite conhecer teu libelo, tuas escritas. Estás à altura das nossas angústias e corrosões de vidas, que são despojadas covardes e diariamente sob inúmeras formas, ante ao descalabro do holocausto vivido de fato nas periferias que habitamos; ao mandonismo e todos os ciclos viciosos mantidos nos acordos dos submundos dos compadrios – denunciados pelas epistolares de Pe. Antônio Vieira. Tão singular a apropriação de um cargo público por décadas, que quase por acaso se entrecruza à censura prévia exercida por veículo completamente desacreditado fadado às calendas, e aliás à pseudo-feira.
    Nossa região Necropolitana, segue o circo dos horrores:
    “Território de chacinas, perseguição política, provincianismo.
    Mas não me espanto quando vejo que resistem os sobreviventes. Respiro fé para injetar temperança nos pulmões, porque – apesar de tudo – tudo faz parte de mim”.

    O texto acima da Prfa.Marly Silva, brilhante e escorreito, desnuda todo o cenário triste e tradicional vivenciado no Pará.

    Paloma siga no contra fluxo, com plenos pulmões e mãos fortes. Oxalá tenhas a temperança necessária à persistência e exercício do teu trabalho. Foco, Força e Fé! Abraço fraterno.

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    Publicado por Amelia A. Oliveira | 17 de maio de 2018, 10:19
  10. Paloma, uma outro título que você pode atribuir à Belem além de Necrópole é o de Narcópole. Somos um dos mais importantes hubs Sul-americano de tráfico de drogas.

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    Publicado por Jose Silva | 17 de maio de 2018, 19:44
  11. Ao Daniel e a Paloma. Daniel, você verdadeiramente deseja saber sobre as aspas e o endereço da obra? Estou com dificuldade para crer nisso. Vou ser sincero. Não creio que foram as aspas e a fonte literária que provocou em você comichão e desconforto, chegando ao ponto de se dignar a fazer tais questionamentos. Mas satisfarei as perguntas-pretexto. As aspas não existem no original da obra. A frase está no livro: Machado de Assis. Obra completa, Volume 2. J. Aguilar, 1962. Se era realmente só isso, me perdoa pela alta frequência e incredulidade do meu desconfiômetro.
    Quanto ao comentário da Paloma. Alegro-me por ver você novamente neste lugar, isso é prova de grandeza, maturidade e firmeza. Paloma, concordo com você que a frase está deslocada do contexto. Sei de que arvore e em que estação do ano colhi o fruto. É por isso que a aplicação da frase é possível dentro do contexto que estamos tratando. E o que estamos debatendo é que um escritor ou escritora pode e deve (se quiser), tratar sobre qualquer tema, mas que o devido reconhecimento lhe será tributado não simplesmente pelo que o escritor escolheu versar, mas, sim, pela maestria com que expõe o tema em palavras-imagens. Nesse sentido é exequível a aplicação da frase: “lágrimas não são argumentos”. Nesse sentido não houve desonestidade intelectual ou erro.
    Em relação a segunda frase, de fato não é machadiana, é minha. Por isso ela contem as limitações e idiossincrasias pertinentes a seres como eu. Quanto a tua releitura e aplicação de Lima Barreto, respeito, mas preciso pontuar que Barreto nunca teve uma agenda ideológica como sua. Isso não é uma opinião minha, é fato histórico e literário. Claramente Barreto tem a temática política-antiescravista, como tantas outras, mas ele não se deixou apequenar pela moldura-temática. Ele não se tornou escravo de uma único mote, muito menos subverteu a parte pelo todo.
    Uma das facetas que diferenciam os grandes escritores é a capacidade de transcender ou modelar os temas que tratam no conjunto de suas obras. Lima Barreto não se tornou ator de um único papel ou tema. A temática-moldura não teve domínio sobre ele. Não ficou enjaulado e reduzido a nenhuma bitola. Transitou com desenvoltura por algumas temáticas, e não ficou refém de nenhuma. Ele não se tornou escravo da sua cor ou dor, pelo contrário, se tornou senhor de todas elas. Lima Barreto usa, explora, burila com perícia as temáticas que tratou. Ele é criativo!
    Sobre o humanismo de Machado…olhando para tua frase: “São dois autores negros, com visões estratégicas e estéticas diferentes, ambos críticos contumazes do racismo e da mentalidade eurocêntrica da falsa aristocracia carioca do início do século XX. Dizer que Machado de Assis era um humanista – aquele que diz “somos todos humanos” e neutraliza as questões de classe, raça e gênero – é um equívoco sem tamanho”. Vejo contradição ou uma tremenda severidade da tua parte entre o primeiro e o segundo parágrafo do texto em tela. Você disse que Machado de Assis é crítico do racismo e da mentalidade eurocêntrica, mas não é humanista por ter neutralizado questões de classe, raça e gênero. Machado não deixa de ser um humanista pelo fato de não ter assumido uma agenda nos seus termos. Um grande escritor paira sobre essas questões, por isso geralmente consegue tratá-las mais acertadamente do que quem está dentro da caixa-agenda.
    O historiador Eric Hobsbawm em toda sua vasta obra não deu um “cascudo” na cosmovisão socialista, e como historiador era seu dever fazer tais críticas, mas não o fez. A férrea moldura socialista o impediu, o cegou. Seu pacto de conivência e silencio foram seus erros como historiador. Por essa razão devo tratá-lo como um historiador de segunda categoria? Não! É injusto e complicado querer impor a tua bitola-agenda a Machado de Assis, ou a qualquer outro ser. Abraço!

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    Publicado por fisica | 17 de maio de 2018, 20:00
  12. Texto real, visceral… Só os demagogos se revoltam contra a verdade!

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    Publicado por Sérgio Ferreira | 18 de maio de 2018, 14:17

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