(Publicado no Jornal Pessoal 235, de maio de 2000)
A Amazônia não é prioridade nacional. Esta verdade contraria a retórica dos discursos e das mensagens publicitárias. Mas ficou mais uma vez evidenciada pela polêmica desencadeada em torno da reforma do Código Florestal. O eixo do combate, travado (para efeito de simplificação) entre “preservacionistas” e “desenvolvimentistas”, era a redução ou ampliação da possibilidade de desmatamento na região.
Na semana passada, os segundos venceram: conseguiram uma aprovação tranqiuila (10 votos contra 3) para a emenda do deputado Moacir Micheletto (PMDB do Paraná), numa comissão mista do Congresso Nacional, voltando a ampliar de 20 para 50% a área que pode ser desmatada em plena floresta amazônica, além de outras modificações que tornam mais permissivas as normas ambientais brasileiras.
Os chamados ruralistas deixaram de lado uma democrática negociação de três meses mantida pelos representantes de todos os grupos envolvidos ou interessados na questão, que fluiu dentro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para um projeto de lei apresentado pelo governo ao Congresso, e virou a mesa. O substitutivo de Micheletto volta em alguns pontos ao texto original do Código Florestal, de 1965, e, em vários outros, a muito aquém, como se nesse período a humanidade não tivesse evoluído para a compreensão dos problemas ecológicos do planeta.
Nada mais natural do que a reação generalizada contra a decisão tomada pela comissão parlamentar. O governo foi acusado de fazer corpo mole à manobra dos ruralistas em troca dos votos da bancada mais conservadora do Congresso, em favor da aprovação do salário mínimo de R$ 151, em votações que ocorreram simultaneamente. Tentando se desvencilhar da acusação, o governo anunciou de pronto que vetará a emenda Micheletto se ela for aprovada em plenário, a próxima etapa da sua trajetória. Até lá, estará restabelecido todo o clima de tensão e desgaste que parecia ter sido superado com o acordo em torno do projeto de lei referendado pelo Conama.
Entre o inferno e o paraíso
A aprovação do texto patrocinado pelos ruralistas é um retrocesso tão explícito que parece difícil sustentá-lo diante dos protestos surgidos de todos os lados, fora (como de regra) e – principalmente – dentro do país. Mas nem a emenda Micheletto era a antessala do inferno, nem sua rejeição abrirá as portas do paraíso. A Amazônia continuará naquele terrível círculo intermediário descrito pelo poeta italiano Dante Alighieri na sua Divina Comédia: o purgatório.
Em 1996 (ver Jornal Pessoal 144) o governo decidiu elevar de 50% para 80% a área de reserva legal de cada imóvel rural estabelecido em floresta densa amazônica. Era a reação à nova expansão dos desmatamentos a partir de 1991, depois de um decréscimo registrado desde 1988, sucedendo o pique de derrubadas em 1987 (80 mil quilômetros quadrados de selva tropical vieram abaixo nesse ano, triste recorde mundial batido pelo Brasil, sem contar outros 120 mil km2 de outras coberturas vegetais derrubadas só na Amazônia).
Apesar dessa providência, o percentual de desmatamento na Amazônia pulou dos 12% dessa época para os atuais 15% da superfície da região, índice que se torna ainda mais grave quando se toma como referência não a área total (os 100%), mas o limite passível de desmatamento (80% na versão ainda em vigor ou mesmo os 50% do deputado Micheletto). Na verdade, restariam 20% ou, no máximo, 40% de áreas legalmente desmatáveis.
Só que, ao invés do que aconteceu em 1996 (uma medida restritiva, eficiente ou não, como resposta à tendência detectada de crescimento das derrubadas), agora se propõe abrir ainda mais as porteiras, quando até mesmo o bom senso recomenda exatamente o inverso. De positivo, há a reação, o protesto e a indignação que tomaram conta da maioria da população brasileira. No entanto, um segmento ainda expressivo dela – e, dentro dele, um grupo agressivo e poderoso – teima em seguir na direção oposta, dispondo a tudo para alcançar seu objetivo.
Como está provado na prática pelos dois anos recentes de crescimento continuado dos desmatamentos, após uma estabilização nos dois anos anteriores, a mera norma legal não é o bastante para inibir os processos econômicos irracionais e destrutivos na Amazônia. Em parte porque é difícil fazer cumprir a lei numa região tão grande. Em parte, também, porque, quando há os instrumentos para executá-la, uma série de interferências tira a eficiência e a eficácia na hora de colocá-la em prática (dificuldades em relação às quais serve de exemplo a série de escândalos no Ibama do Pará).
Entretanto, se houver vontade, a situação pode começar a mudar. A vontade é poderosa quando está bem motivada, solidamente sustentada. Infelizmente, os brasileiros ainda desconhecem o que é a Amazônia (mais desgraçadamente ainda, nem os habitantes da região têm essa consciência). Seria improvável – para não dizer impossível – que os ruralistas e seus Michelettos conseguissem audiência se a nação estivesse convencida de algumas premissas fundamentais da “questão amazônica”, que já são consideradas como verdades pela ciência. Tais pressupostos fariam esses senhores se tornarem tão anacrônicos e ridículos quanto um finlandês defender a destruição de suas florestas (de produtividade incomparavelmente superior à brasileira, embora com um recurso natural incomparavelmente inferior).
A Amazônia que acabou
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