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Ciência, Deesmatamento, Ecologia, Floresta

A ciência pode salvar a Amazônia?

O ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, anunciou como iniciativa inovadora e mais avançada a criação de laboratórios no interior da Amazônia para estudar a floresta em contato direto com o ambiente e os seus moradores, buscando extrair conhecimentos para a promoção de desenvolvimento sustentável. O programa começaria com a instalação de dois laboratórios, em locais ainda definidos.

Essa ideia, anunciada em entrevista que o ministro concedeu à Folha de S. Paulo, publicada na edição de hoje, é o aproveitamento de propostas já antigas, requentadas e recobertas por nova roupagem. Não vai mudar a irracionalidade que comanda a expansão da fronteira econômica na região nem dar um salto na relação da ciência com a realidade nessas destrutivas frentes de expansão.

Para ajudar na reflexão, reproduzo o último texto que escrevi sobre a minha utopia para atingir o objetivo que o ministro-astronauta se propõe alcançar. É uma proposta que apresento há mais de 10 anos, sem conseguir pelo menos coloca-la em debate, sirva ou não, seja viável ou não.

A ENTREVISTA DO MINISTRO

Como vai ser a criação de laboratórios dentro da floresta Amazônica? O que se vai estudar e quem vai para lá?

A gente precisa levar pesquisa e tecnologia para essa região. Como é que a gente consegue utilizar o conhecimento das pessoas a respeito da biodiversidade, do que existe naquele bioma? A gente pode criar laboratórios espalhados pela Amazônia e utilizar a infraestrutura já existente.

Por exemplo, quartéis do Exército em locais com infraestrutura e colocar pesquisadores no meio da Amazônia de forma que eles possam trabalhar com as comunidades locais. Conhecer a respeito do sistema, estudar biodiversidade e ativos que podem se transformar em novos medicamentos, novos cosméticos. Isso significa desenvolvimento sustentável.

Quando será a primeira inauguração?

A gente deve começar com uns dois laboratórios e está escolhendo quais seriam os locais, vendo quais seriam os equipamentos mínimos.

Se a gente tiver que construir uma estrutura, seria com dois contêineres e um meio coberto equipados. Um é para a pessoa morar, para os pesquisadores ficarem três, quatro meses. A estrutura de moradia de um lado e o laboratório do outro. Estão determinando o que vai ficar dentro desse laboratório. Vai ser equipado com drones, sistema de conexão de internet, e assim por diante. A ideia é que, neste ano, a gente tenha pelo menos um ou dois pilotos funcionando. Aí a gente ajusta e espalha.

O governo já questionou dados de desmatamento, aquecimento global e fez ataques às ciências humanas. O senhor, como cientista, o que acha desses comentários?

Olha, nós temos uma ciência no país que tem um sistema bem desenvolvido. Sempre vai haver um certo questionamento a respeito da ciência. É normal. Aliás, a própria ciência questiona os seus resultados e assim é que a gente melhora os resultados.

O plano é ampliar a atuação do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. Entrou o satélite Cbers-4A para melhorar essa parte de satélites e provavelmente outros virão. A gente pretende ampliar o próprio sistema do Inpe, sendo um repositório de dados. Não só dados de desmatamento e queimada mas também dados de agricultura, terras e meteorologia.

O governo afirmou que o desmatamento era menor do que depois se provou com os dados do Prodes (Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia) e houve uma escolha por não defender o ex-presidente do Inpe Ricardo Galvão. O governo não dá sinais trocados ao querer divulgar mais a ciência e, ao mesmo tempo, desacreditar dados oficiais?

Você vê que o Prodes foi anunciado dentro do Inpe com o [ministro do Meio Ambiente, Ricardo] Salles. Porque nós trabalhamos com números, fatos, relatórios. E foi isso que eu implementei ali dentro do Inpe: ‘Olha, a gente não vai entrar em discussões. A nossa discussão é o fato’.

Teve alguma resistência na época em relação a essa divulgação dos dados?

Não em relação à divulgação. Foi um problema de comunicação. O Deter trabalha com alertas de desmatamento, não é desmatamento. O Prodes trabalha com o desmatamento. Aquilo no início partiu de dados do Deter. Aquele negócio propagou.

E o que aconteceu com o Galvão? A gente conversou e nós achamos por bem que ele saísse, porque ficou uma situação muito desconfortável. No momento em que ele começou a ter essa discussão direta com o presidente ficou uma situação muito desconfortável.

O senhor acha que ele estava errado?

Sim, logicamente. Ele tinha que falar comigo e, juntos, a gente podia falar com o presidente. Eu não posso ter os meus diretores de instituto passando por cima do ministério.

Haverá uma iniciativa pessoal do senhor de cuidar melhor dos dados de mudanças climáticas? O seu ministério vai assumir alguma atuação que hoje é do Ministério do Meio Ambiente?

Nós temos um trabalho conjunto. O Inpe com o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente]. Aliás, a ideia desse sistema é passar informações para o Ibama para que faça o trabalho de campo deles. O meu ministério trabalha para auxiliar os outros ministérios. E esse trabalho vai continuar.

Esses dados são levados em conta nas políticas públicas? Há uma impressão de que o governo não está muito preocupado com essas questões.

Existe, sim, uma preocupação. Eu vejo isso nos encontros que nós temos. É que existem muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Às vezes, um fato ou outro fica perdido no meio de tanta coisa que acontece. Mas existe essa preocupação.

O KIBUTZ AMAZÔNICO

O governo federal, como o principal agente no processo de ocupação da Amazônia, criou mecanismos de apoio a diversos atores no cenário dessa fronteira. Financiou grandes empreendimentos de mineração, metalurgia e siderurgia, obras de infraestrutura, assentamentos de colonos, abertura de fazendas de gado, garimpos, cultivos agrícolas – ou seja, atividades produtivas convencionais e seu suporte logístico.

Além do incremento de indicadores quantitativos, o principal efeito dessa ofensiva, que já dura mais de meio século, foi a destruição dos recursos naturais da região, traduzido, principalmente, pela derrubada de floresta numa escala jamais experimentada até agora em qualquer outro país, em qualquer época. Além da desestruturação social, repressão à cultura nativa e consolidação de um modelo colonial de exploração econômica.

Feito um balanço de todas as parcerias até agora experimentadas, resta uma, que não é inédita apenas em relação à expansão da fronteira nacional na Amazônia, mas em todo mundo: o assentamento de um novo personagem, esquecido ou maltratado pela ação oficial: a ciência e os cientistas.

O governo colocaria, nos pontos de vanguarda do espaço amazônico, núcleos de formação de mão de obra científica e de experimentação da ciência, os “kibutzim científicos”. A definição dos locais obedeceria a diretrizes extraídas do zoneamento ecológico-econômico federal, em combinação com os zoneamentos estaduais e – se existentes – municipais.As atividades a serem desenvolvidas se compatibilizariam com as principais demandas de conhecimento nos diversos locais nos quais a frente econômica toca nas áreas ainda não ocupadas, ou onde os conflitos, produzidos tanto pela tensão entre os grupos sociais como pela incapacidade de utilizar os recursos adequados para a penetração nessas áreas, exigem a presença do poder público, como agente arbitrador e normatizador.

Vejamos um exemplo. A Terra do Meio, no vale do Xingu, no Pará, é, hoje, a principal zona de tensão entre a frente desmatadora oriunda do sul do país e a população nativa ainda em equilíbrio (mesmo que imperfeito) com a natureza. Seriam criados campi para abrigar um instituto de floresta, um centro de estudos agrários, um instituto de águas (tendo como referência a polêmica em torno da hidrelétrica de Belo Monte), um instituto de agricultura da terra firme, um núcleo de antropologia e entidades ainda a examinar.

Esses campi dariam cursos de graduação e pós-graduação, recrutando tanto os candidatos à iniciação no ensino superior quanto os que já estão em condições de se dedicar a pesquisas. As vagas seriam limitadas, para possibilitar o melhor rendimento possível. Os alunos teriam aulas convencionais, mas, já na graduação, teriam que desenvolver projetos de pesquisa que se desdobrariam para a pós-graduação.

Não apenas enquanto trabalhos acadêmicos. Um estudante de engenharia florestal receberia, a partir do momento da aceitação da sua candidatura, por comodato, um talhão de mata nativa (500 hectares, por exemplo) para nele realizar suas ideias.

Além de uma bolsa de valor significativo, ele teria acesso a um empréstimo para desenvolver operacionalmente seu lote, empréstimo que se tornaria a fundo perdido com a aprovação da tese de doutorado, no final do curso integrado (no caso de não aprovação, o pagamento seria feito em forma de prestação de serviços na rede pública de ensino, computando-se o valor subsidiado do empréstimo).

Esse aluno/pesquisador receberia permanente assistência e supervisão de técnicos de notória qualificação, nacionais e estrangeiros, submetendo-se ainda a auditagens contábeis e financeiras.

Os campi, instalados nos pontos de tensão e transição da presença humana, seriam bases para a circulação e atuação prática dos graduandos, pós-graduando e cientistas, tanto pelos ambientes acadêmicos como na interação com a população local. O objetivo seria fazer a demonstração da ciência para os habitantes nativos, ao mesmo tempo em que absorver seu conhecimento. Da mesma maneira como os alunos e seus orientadores realizariam atividades junto à população local, os moradores seriam incentivados a frequentar cursos específicos nos campi, de acordo com a natureza da s suas atividades.

Uma boa realização dessa diretriz acabaria com o velho e cruel ditado brasileiro, segundo o qual quem sabe, faz; quem não sabe, ensina. Também – e principalmente – faria a ciência ter participação direta e imediata no drama amazônico, ao invés de ser ferramenta de retaguarda ou fonte de referência remissiva, sobretudo sobre os erros cometidos.

Ela passaria à linha de frente dos acontecimentos, tornando-se protagonista da história. Não uma ciência qualquer, mas a melhor que seria possível constituir com base nas qualificações nacionais e no intercâmbio internacional.

Os kibutzim cumpririam um plano de desenvolvimento científico da Amazônia, com horizonte de 20 anos, tendo como principal suporte os zoneamentos e recursos suficientes para enfrentar um desafio que poucos empreendimentos científicos representam hoje no mundo. Evidentemente, os recursos nacionais não serão suficientes.

Acredito que todo um plano, como o que agora se quer iniciar, caso a proposta venha a ser considerada pelo menos como merecedora de apreciação, teria que ser dedicado integralmente a essa iniciativa, pelo menos para poder atrair outras fontes de financiamento.

O orçamento dos kibutzim científicos será pesado. Terá que possibilitar construir campi confortáveis em locais distantes e isolados, dar-lhes o melhor que a ciência e a tecnologia pode oferecer em cada um dos ramos do saber utilizado, oferecer aos alunos e pesquisadores remuneração capaz de mantê-los nesses locais por pelo menos oito anos e verba de investimento para seus projetos executivos ou produtivos.

Tudo isso para colocar a ciência e os cientistas onde estão as frentes pioneiras ou além delas, antecipando-as, no esforço para impedir que cheguem até esses locais, se tal é necessário ou façam melhor do que já vinham fazendo. Conciliando a inteligência com a natureza, enquanto há Amazônia para permitir essa utopia.

Discussão

5 comentários sobre “A ciência pode salvar a Amazônia?

  1. Sobre os kibbutzim científicos, o único lugar onde o socialismo deu certo foi em Israel. E os motivos estão na Bíblia. Fora da terra santa é impossível.

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    Publicado por jjss555js | 12 de janeiro de 2020, 11:24
  2. Excelente debater agora a possível eficácia da tutela de tropas do Exército a pesquisadores que se embrenham na floresta. Seriam os soldados a garantia dos laboratórios e dos que neles iriam trabalhar? Lendo o assunto, Lúcio, lembrei-me da frustrante tentativa do ex-primeiro reitor da Universidade Federal de Mato Grosso, médico Gabriel Novis Neves, quando enviou equipamentos caríssimos ao Aripuanã, sonhando alto. O Estadão publicou reportagem de página naquela ocasião (1977?), denunciando que a sonhada Cidade Científica de Humboldt não saíra do papel, e sua tecnologia nunca utilizada pegou ferrugem no meio da selva. Imagino agora, com aquela zona sentindo os efeitos da exagerada ocupação das margens da rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163), por lavouras de soja, e a contaminação de populações indígenas nas circunvizinhanças, o que de bom a Universidade poderia fazer, sem desagradar o agronegócio.

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    Publicado por Montezuma Cruz | 14 de janeiro de 2020, 14:42
  3. Nao precisamos de astronauta nem utopia. Como diz a Greta, sabemos o suficiente; falta vontade e coragem. O medo está explícito no texto do ministro. No caso brasileiro, minha humilde experiência tentando resgatar um produto do Pará, mostrou-me que também no meio acadêmico e científico existe o agravante de acreditarem em Papai Noel, apesar do discurso. Na hora do pega todo mundo arrega… A própolis é outro exemplo. No Brasil jogavam fora até que o Japão aproveitou a sobra…

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    Publicado por Paulo de Almeida | 19 de janeiro de 2020, 08:22

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