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Memória

Elias Pinto, 95

Elias Ribeiro Pinto teria completado hoje 95 anos. Morreu em dezembro de 1985, cinco meses depois de chegar aos 60. Foi um peregrino. Na primeira migração dos pais cearenses pela Amazônia, atrás da miragem da borracha, nasceu no Acará, a pátria da cabanagem, que teve cearenses na sua liderança. De volta ao Nordeste, aos 6 anos carregava na cabeça semente de algodão para ser embarcada no trem.

O brabo Raimundo Pinto não conseguiu se fixar na terra natal e voltou à Amazônia, agora em Santarém, de vez. O menino Elias foi ser cobrador nos barcos que faziam a linha no Baixo Amazonas, a partir da pérola do Tapajós. Aprendeu inglês por conta própria e dava aula a alunos do bairro popular da Aldeia (em memória dos índios tapajós, massacrados pelo colonizador português), numa mesa rústica e comprida, na vasta sala da casa de palha e barro.

Presidiu  a Congregação Mariana no fim da gestão dos padres alemães, que seriam substituídos pelos americanos. Foi fotógrafo. Fez a primeira transmissão radiofônica diretamente do estádio municipal no clássico entre dois santos de chuteiras: o São Francisco, da elite, e o São Raimundo, ao qual a família Pinto se vinculou, na Aldeia.

Com o dom da oratória e uma memória excepcional, foi o auxiliar do prefeito (da elite, seu compadre eterno e um dos seus amigos mais fieis) Aderbal Caetano Correa, o “seu” Babá. A prefeitura dessa época só tinha um secretário. Papai era um verdadeiro faz-tudo. Até discursava, nas solenidades oficiais, representando o tímido prefeito, que assistia e aplaudia. Ficou conhecido como o papagaio do prefeito.

Papagaio dos bons. Impressionou Getúlio Dorneles Vargas, quando o ex-ditador passou por Santarém, em 1950, em campanha para a volta à presidência da república, não mais com o suporte da espada militar, mas pelo voto do povo. Getúlio deu um cartão assinado ao jovem de 25 anos que o saudara. Se vencesse, iria ajudar a concretizar o que o orador dissera ser a maior aspiração da região: ter uma fábrica para industrializar a fibra da juta, introduzida por japoneses e plantada extensamente na região.

Getúlio cumpriu a promessa. Em duas audiências que concedeu a Elias, a primeira só com ele, a segunda com a presença de Kotaro Tuji, o grande empreendedor do negócio, nasceu a Tecejuta, que viria a ser a maior fábrica do interior da Amazônia extrativista.

Elias fundou o PTB (o partido varguista) de Santarém e fundou um jornal, o Baixo Amazonas, do qual era o principal redator, de excelente padrão para a época e o local, bem melhor do que o mais influente e antigo, O Jornal de Santarém. Plantou aí as sementes, que frutificaram na forma de quatro filhos jornalistas, dos sete que ele e dona Iraci de Faria Pinto geraram (uma oitava filha morreu ao nascer).

Conquistou o mandato de deputado estadual com a sexta maior votação no Estado. Veio para Belém exercer o cargo em 1955, trazendo a família. Renunciou em 1958 para concorrer à prefeitura. Não era desculpa de perdedor sua queixa de que foi vítima de fraude eleitoral, repetida em 1962. O juiz que funcionou nas duas eleições foi promovido para Belém. Não deve ter sido mera coincidência que Elias derrotou seu maior rival, Ubaldo Correa (sobrinho do “seu” Babá, doutor engenheiro) em 1966.

Antes, foi nomeado pelo governador (também eleito) Magalhães Barata para integrar a comissão de planejamento da SPVEA, antecessora da Sudam, no último ato público a que o caudilho compareceu, já gravemente doente. Só frequentara a escola até o 3º ano primário (o fundamental de agora), mas lia muito e aprendia com facilidade. Ao sair, quando Jânio Quadros desbancou a aliança PSD-PTB, foi ser empresário, sempre cheio de planos, inventivo e dissipador da sua competência, como foi de parte da sua vida.

Finalmente, em 1967, foi verdadeiramente o primeiro homem do povo – e, em particular, do discriminado cearense, o arigó – a assumir a prefeitura do 2º mais importante município do Pará e o 4º da Amazônia, pelo MDB, que era a oposição ao regime militar. Sua vitória foi massacrante, mas ele só contava com 3 dos 9 vereadores. Desde o início, o objetivo dos seus adversários era o mesmo que Carlos Lacerda fixou contra Juscelino Kubitschek, o sucessor de Vargas: não pode vencer; se vencer, não deve ser empossado; se empossado, não deve governar; se governar, não deve concluir o mandato.

Elias Pinto, o “barra limpa” da campanha eleitoral, governou por 9 meses, foi afastado pela câmara, sofreu uma devassa teleguiada no Tribunal de Contas do Estado e quando, graças a um mandado de segurança concedido pelo juiz (depois desembargador, cujo centenário se comemorou) Christo Alves, o governador mandou a polícia impedi-lo de reassumir, houve violência e numa passeata com milhares de participantes, mortos e feridos, despejaram Santarém da lista de democracias municipais e a confinaram como área de segurança nacional, destituída do direito de escolher seu prefeito. Isso, a três meses do AI-5, que lançaria o país inteiro na era de trevas profundas.

Homem político até a alma, Elias Ribeiro Pinto não conseguiu mais voltar à rota da sua vocação, penou a partir daí, sofreu um AVC sozinho num quarto de hotel em Santarém e não reencontrou a rota ao que era ainda mais vital: a vida. Os últimos brilhos dos seus olhos, com o corpo sem movimento na cama de hospital, pareciam buscar desesperadamente a própria história, que se perdeu pelos desvios da vida.

Discussão

14 comentários sobre “Elias Pinto, 95

  1. Caro Lucio

    Dá um romance a vida de Elias. Creio, que Elias, soube dizer aos mocorongos que aquela aldeia do Tapajós tinha um recado a dar para os paraoaras, cujas lideranças políticas baseadas no alacidismo, se armaram e pela força, apagaram uma chama de esperança que sempre lume nos olhos dos grandes homens.
    Me emociono lendo o que escreves a respeito de Elias. Aliás, o fruto não cai longe do pé.
    Abraços
    Garcia

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    Publicado por Agenor Garcia | 31 de julho de 2020, 21:58
  2. Lúcio, meu abraço em homenagem ao meu amigo, Elias Pinto.

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    Publicado por Ronaldo Passarinho | 31 de julho de 2020, 22:03
  3. Que trajetória linda! Um vencedor.

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    Publicado por Edyr Augusto | 31 de julho de 2020, 22:47
  4. Uma bela trajetória, Lúcio. Parabéns pelo texto.

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    Publicado por Marilene Pantoja | 1 de agosto de 2020, 19:45
  5. Lúcio, há tempos corro de um terapeuta a outro e, até agora, nenhum deles conseguiu (penso em ir buscar tratamento nos Estados Unidos) desfazer o imenso, persistente e rígido edema que tu, num momento de indescritível maldade e pior fraqueza, provocaste no meu pobre e combalido ego. Ego que já era grande, tornou-se enorme. Um sacrifício carregá-lo. Resultado, hoje, quando me sento, é necessário arranjar uma segunda cadeira para acomodá-lo. Essa dolorosa tragédia ocorreu quando ao comentar o teu “A Tragédia de Santarém”, publicaste que eu é que deveria ter escrito o livro “cuja perspicácia, ironia e senso profundo da história etc. etc. etc.”. Sabendo que a inveja é maior do que a floresta, frase imortal do Cléo Bernardo, tal qual o ser ou não ser do Shakespeare, apressei-me em negar competência. O fato é que ninguém é mais qualificado do que tu para escrever sobre o inteligente, combativo e destemido Elias. Conheces os fatos da vida dele; de ti ele tem a admiração e o respeito do filho e, não menos importante, sabes escrever. Eu disse que “A Tragédia…” reclamava um segundo volume, está na hora ou passando dela, faz enquanto tens força e disposição. Deves isso a ele.
    P. S. – Na encenação das peças teatrais de antigamente, encerrado o espetáculo, se o público tivesse gostado vinha o brado: o autor! O autor! Agora digo eu: o juiz! O juiz!

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    Publicado por Alcides | 1 de agosto de 2020, 21:15
  6. Bela homenagem,ainda bem que transcreveste parte da história dele em livro.

    Esse prefeito de Santarém, Aderbal Caetano Correa, é parente do fundador de Itaituba, Joaquim Caetano Correa, o seringalista?

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    Publicado por isilva | 2 de agosto de 2020, 22:27
  7. Trajetória Fantástica!

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    Publicado por Marisa | 3 de agosto de 2020, 09:29

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