O único poema épico que sobreviveu ao desgaste e às mutações do tempo, a Divina Comédia, de Dante Alighieri, começa soberano a sua grande viagem em terza rima:
Nel mezzo del camin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
chè da diritta via era smarrita.
Ah quanto a dir qual era è cosa dura
esta selva selvaggia e aspra e forte
che nel pensier rinova la paura!
Outro grande poeta, o americano-inglês T. Elliot, mais próximo de nós, aconselhou aos que se propõem a enfrentar a Comédia no original a primeiro ler uma boa tradução em prosa para se familiarizar com o enredo da peça. Sugiro a versão de Hernâni Donato, que a Cultrix publicou, em 1984. Depois, tantas leituras quantas forem necessárias para conciliar as consoantes duras italianas com a métrica e a rima, sem perder o ritmo nem a trama (mais “instigante” do que qualquer novela da Globo). Ou seja: impossível absorver a plenitude da maior obra humana em verso até hoje concebida. Mas é um prazer e uma experiência recompensadora insistir.
A tradução é sempre uma traição, alertou Ezra Pound. Há cometimentos sacrílegos e até estúpidos em certas traduções. Outras parecem confirmar a desconfiança de que só poeta consegue traduzir poeta no desafio de vencer todos os desafios e armadilhas dos poemas realmente imortais. J. A. de Oliveira Silva não conseguiu. Sua versão: “Da nossa vida em meio do caminho / Achei-me a sós em lôbrega floresta, / Porque da reta estrada me esgarrara. / Ai, que duro caso é dizer, quanto era / Esta selva enredada e densa e áspera / Que o pavor à mente ainda me revoca”.
Em 1995 fui fazer palestra noturna em uma escola na cidadezinha de Pove del Grappa, em Vicenza. Os alunos pareciam me ouvir entediado. Mais do que todos, um rapaz que, me disseram depois, era filho do homem mais rico do lugar. As meninas o rodeavam e ele se exibia, fazendo-as rir de suas piadas. O professor que me convidou acompanhava a situação aflito. O rapaz foi o primeiro a fazer pergunta quando o debate foi abertp. “Por quwe nós estamos aqui o ouvindo? O que temos a ver com a sua história:”, me questionou diretamente, sentando-se então para se deliciar do atrevimento ao lado das meninas.
Disse-lhe que estava ali para agradecer aos italianos por nos terem presenteado com Dante. Foi numa das frases iniciais da Divina Comédia que encontrei a expressão mais justa para definir a deestruição da maior floresta do planeta, no país onde eu nascera e morava: “esta selva selvaggia e aspra e forte”.
Fez-se silêncio. O rapaz então se levantou, veio até mim e pediu desculpas, flagelando-se: “Eu sou um estúpido”. Abraçamo-nos e o recreio foi reconciliador e alegre. Graças a Dante,
Que história, Lúcio.
Veio-me o verso de Drummond porque vc tem tantas histórias pra contar:
“(…) Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiados urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da
costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes…
E muitos de vós nunca se abriram.(…)”
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E tudo por causa de um livro estropiado comprado num sebo…
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A imagem é gasta pelo mau uso porque é verdadeira: o verdadeiro sebista é um garimpeiro. Nenhum monturo de cascalho o intimida.
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O grande poeta é profeta. O final dessa poesia se dirige aos inquisidores que surgem se súbito, sem história e sem legitimidade: “Tudo tão difícil depois que vos calastes…
E muitos de vós nunca se abriram.(…)”. Esses, que nunca se abriram, atacam com furor os que nunca se calaram. Querem calá-los para que se instalem seus zumbidos cacofônicos.
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Lúcio,
una persona
Gratíssima
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Obrigado, Garcia.
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Não calaremos.
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