Uma das colunas mais interessantes da imprensa paraense foi Vozes da Rua, publicada durante mais de duas décadas pela Folha Vespertina, o outro jornal diário do que pode se podia chamar de grupo Folha. O principal redator da coluna foi Paulo Maranhão, ele próprio o dono da empresa e seu redator-chefe. Sem precisar assinar, nem com pseudônimo, o velho Paulo Maranhão aproveitava o espaço, na primeira página do jornal vespertino, para dar suas opiniões, observar a vida da cidade, atacar desafetos, informar e aprimorar seu texto.
Às vezes abusava das palavras difíceis e dos arcaísmos, mas manejava com total controle uma língua que aprendera (e apreendera) tanto na cultura nacional quanto – e sobretudo – nos clássicos da literatura portuguesa. Estava mais ligado a Herculano, Eça ou Camilo do que aos brasileiros. A coluna expressa o íntimo de Paulo Maranhão mais do que qualquer outro dos seus tantos escritos.
Por issso, decidi fazer uma antologia das Vozes da Rua. Optei por deixar de lado, ao menos por ora, os textos políticos. A seleção buscou retratar os usos e costumes da cidade e dos seus moradores, as vozes da rua captadas por Maranhão. Nas quais podia-se falar de cacete e cacetinho, referindo-se a um tipo de pão, sem provocar olhares maliciosos e comentários maldosos. Belém ainda era Belém e não se dava conta disso.
* Um fiel que frequenta os atos religiosos da igreja de S. Raimundo
considera inconveniente que padres estrangeiros, pronunciando mal a nossa língua, preguem sermões que, em vez de incutirem no espírito católico unção e respeito, provocam zombarias. Cita ter ouvido há dias a prédica de um deles na paróquia de S. Raimundo, nome que o sermonista chamava “piroca” de S. Raimundo. O auditório desatou a rir e o reverendo, irritado, exclamou: – Advirto que não admito riso dentro da “piroca”. Quem quiser rir vá pra fora da “piroca”. (Agosto de 1958)
* Certo juiz aposentado, que se destaca pelo vozeirão, tem um costume péssimo: quando vai a compras em qualquer estabelecimento comercial, aproveita a distração do caixeiro e embolsa o que lhe fica ao alcance da mão. Outro dia, entrou no “Vesúvio” e pediu certa quantidade de bombons e, na ocasião em que o empregado estava a pesá-los, passou para os bolsos ávidos duas mancheias, em quantidade superior àquela que adquirira. O surrupiador – diz o informante das “Vozes” – tem um dedo da destra atrofiado. Que faria se não tivesse? (Maio de 1960)
* Num dos arranha-céus de Belém o vigia costuma fazer, à noite, “tournées” de inspeção pelos corredores e foi num desses giros que surpreendeu a povoar a povoar a terra uma das moradoras do Edifício, cujo parceiro era um empregado da Panair.
O fato foi denunciado ao síndico, que fez sentir à Vênus flagrada que devia convencer o marido de que não está satisfeita e deseja mudar-se.
Diz o informante das “Vozes” que a esposa adúltera tem filhas moças. Que belo exemplo lhes dá! (Agosto de 1961)
* Quem quer camarão! Quem quer camarão!
É o pregão de um vendedor ambulante que anda a oferecer o marisco saboroso por essas ruas afora.
Uma leitora das “Vozes” chamou-o:
Psiu! Psiu!
O homem atendeu-a:
– A como é o quilo?
– Duzentos cruzeiros!
– Mas custa 50 na praia!
– Isso é lá. Aqui são duzentos no duro!
Esse ambulante merece as vistas da Economia Popular. (Dezembro de 1961)
* A Condor tem as suas tradições amorosas que desafiam os anos. De vez em quando retumba de lá um cason escandaloso, em que Baco e Cupido se entrelaçam. Anteontem, essas tradições tiveram prosseguimento histórico. Um grupo de próceres políticos e administrativos ali abancou no bar de João de Barros para o almoço, às 14 horas, tendo cada um a seu lado uma garota das quais o poeta diria: “ter 17 anos sem luz nem ino cência é ter morrido ao despontar da vida”.
O uísque fluía à larga. Não menos o vinho, não menos outros líquidos mais generosos e ardentes. Dessas parcelas alcoólicas desferiu-se uma bebedeira geral. Eram 8 horas da noite quando terminou o ágape pantagruélico. (Fevereiro de 1962)
* Prenuncia-se movimentada a temporada de veraneio na ilha do Mosqueiro; e como já se espera, muitos veranistas trocaram quase em definitivo o maltratado “Presidente Vargas” [navio do governo federal que fazia a linha] pelos velozes táxis-aéreos, cujas passagens caras não diminuem o elevado número de passageiros. É necessário alguns cuidados com o campo de pouso do Chapéu Virado, cuidados que se fazem urgentes (desmatamento das bordas laterais e reparo da pista) antes que algum desastre possa trazer dissabores a quem tão alegremente busca as praias para um justo repouso. (Julho de 1963)
* Os moradores da estrada “Providência” – “Quarenta Horas” – na sua maioria maciça japoneses, pediram ao sr. Prefeito os reparos urgentes de que precisa aquela via pública. Para atenuar as despesas em que o serviço foi orçado, concorreram com a metade. Já lá vão alguns meses e nada até hoje se fez. O inverno vem aí, e se não meterem desde já mãos à obra, a estrada aludida será um lamaçal intransitável. Lembra-se ao prefeito que o prometido é devido. (Novembro de 1963)
* Perguntaram-nos por que a “Palmeira”, onde tanta coisa boa há para vender, não fabrica uns cacetinhos, tão agradáveis de merendar.
Sente-se, realmente, a omissão. Mandam-nos do Rio, em pacotes de 10, que por aqui são vendidos, à razão de 180 cruzeiros o invólucro, ou sejam, 18 cruzeiros cada cacetinho.
É claro que os homens de consciência e de probidade que empregam toda a porção da sua capacidade e inteligência no governo da grande indústria, que é a “Palmeira”, não nos pediriam aquele preço escorchante, pondo os cacetinhos ao alcance das nossas bolsas.
Se nos é permitido interferir o bedelho onde não é de nossa conta, sugeriríamos ao eminente padeiro, como ele próprio se chamou, o nosso ilustre amigo Antônio Marques, que metesse mãos à obra, dando-nos cacetinhos a comer, e pondo os de origem carioca para fora do mercado.
* Flaubert dizia que quando nos tornamos velhos os hábitos são tiranias. O pensamento do autor de “Salambô” parece aplicar-se ao bancário Luzio Horácio de Lima, que, a 13 último, atingiu 75 dezembros, sem querer aposentar-se, mesmo com todas as vantagens legais. Diariamente vemo-lo chegar ao armazém de borracha do BCA [Banco de Crédito da Amazônia, antecessor do Basa], à hora regulamentar, e de lá sair quase ao crepúsculo, deixando em dia o serviço. Para o Luzio Lima, que noutros tempos ganhou medalhas de campeão remista, o hábito do trabalho será uma tirania, de que não se quer distanciar. Ainda o veremos no centenário… (Dezembro de 1963)
Lúcio, eu era leitor assíduo das “Vozes da Rua”.
Uma das coisas que a nossa turma de leitores se dedicava era identificar personagens que a coluna noticiava.
Tempos gostosos da nossa “Belém de outrora”
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É verdade, Ronaldo.
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Vozes da Rua, hoje:
Depois das inundações atípicas que atingiram a cidade naquela manhã extremamente chuvosa de terça-feira 14 de março, a notícia mais amplamente comentada à boca miúda nas ruas – que se diga por todas as classes sociais – continua sendo o emprego vitalício e muito bem remunerado da “Mulher do Barbalho”. Para alguns dos que falaram perto de mim (não comigo) “até as criancinhas dos Barbalhos já arrumaram emprego público”.
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