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Cultura

Zélia é orgulho da Amazônia paraense

Paulo de Faria, teatrólogo e cronista

Devia ter pouco mais de dez anos. Morava atrás da galeria da Assembleia Paraense e estudava na Escola Estadual Benjamin Constant. A praça da República era o meu caminho diário. Estava eu voltando da escola um pouco mais cedo e no final da tarde, no anfiteatro da praça (que deveria se chamar Luís Otávio Barata), nem sabia que ali era um teatro. Estava sendo encenado Angélica, infantil, do Grupo Cena Aberta. A Zélia Amador de Deus, do alto dos arcos da estrutura do espaço, gritava “Blém-blém”. Seu figurino era uma túnica meio parangolé, com um desenho dos ponteiros do relógio no peito.  

Corri pra assistir. E fui assistir os outros dias que se seguiram. E assim o Teatro Experimental entrou definitivamente na minha vida. Passei a ser público em todas as peças do grupo Cena Aberta ali. Antes daquele dia, teatro pra mim só era o que era feito no Teatro da Paz, exatamente do outro lado do passeio central da praça, separados pela coluna de 22 metros que traz a figura de Marianne – a alegoria feminina da republicana francesa, que foi o primeiro e único conjunto escultórico no Brasil a homenagear a República em 15 de novembro de 1897, fincada no centro da nossa praça. Aquele cenário construiu estética e política no centro de minha pesquisa artística no teatro.

Em 1980, estava no palácio da Justiça, na Cidade Velha, pra ter a liberação pra estrear a peça infantil “Saltimbancos”, no recém criado Teatro Experimental Waldemar Henrique. Subi correndo as escadarias do palácio “Cuidado, meu filho”, ficara para trás minha mãe. Chegamos no horário marcado e a Zélia já estava na sala. Foram assinar documentos e eu fiquei balançando as pernas no banco com os olhos perdidos no teto.

Quando era mais criança ia pra escola Rui Barbosa e passava sempre ali na frente. Eu estava dentro dessa vez, “eu ainda nem sou grande.” Quando voltava do colégio atravessava pra praça em frente do cine Guarani e ia pegar tamarindo em frente do Palácio da Justiça. “É assim a Justiça por dentro?” Minha imaginação era fértil, fervia.  Adorava ficar sozinho em espaços gigantes e poder imaginar tudo o que quisesse. “Pra que serve um palácio da Justiça? Onde está a rainha Justiça?”.

Descemos eu, mamãe e a Zélia as escadarias daquele palácio. E Zélia nunca mais saiu do meu imaginário teatral paraense nos anos de 1980. E sempre a justiça fez parte daqueles tempos. Ela ia nos assistir pra saber se liberaria e se liberasse qual seria a censura. Ela que deixava eu fazer ou não teatro, não era a minha mãe. Essas coisas pesam na cabeça de uma criança quando não se tem respostas.

Zélia descortinou a cena teatral em toda a década de 1980, que vivi em Belém. Se não estava no teatro estava no Cedenpa – Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará. Zélia plantou raiz no homem antirracista que me tornei.  “A luta a gente não aprende na escola, luta a gente aprende lutando”, disse ela, na semana passada ao receber honraria, e recitou um poema de Conceição Evaristo sobre luta e ancestralidade do povo negro e, além de agradecer à família, Zélia agradeceu aos movimentos negros brasileiros e à sua ancestralidade, com quem aprende muito todos os dias.

A homenagem foi no Teatro da Paz. A primeira vez que entrei no palco desse teatro foi quando a Zélia ensaiava com Margareth Refkalefsky “Quarto de Empregada”, de Roberto Freire. O público ficava no palco. Reconheci a Zélia, “A atriz do relógio”. A porta dos fundos estava encostada. Entrei. Subi as escadarias – como adorava escadarias, hoje vejo e quero desmaiar. Passei pelos camarins e entro no palco. Aquele cheiro de passado, aquela escuridão dos sonhos, era tudo misterioso pra mim. Aquilo era a coxia de que tanto falavam. Por onde entravam os artistas! E assisti o ensaio, quietinho, escondido. Quando acabou, acenderam as luzes de serviço e sai correndo assustado. Cheguei a ouvir “De quem é aquela criança?”

Zelia recebeu o título de Doutor Honoris Causa na noite da última quinta-feira, 18. Reconhecida no mundo por ser uma das vozes na luta por direitos da população afroamazônica. O que poucos sabem é da sua história no Teatro paraense. Eu sei, respeito, admiro e venero. Parabéns, mestra!

Evoé Zélia!

Axé.

Discussão

Um comentário sobre “Zélia é orgulho da Amazônia paraense

  1. Paulo, teu relato reafirma que o papel da Zélia e do CEDENPA na cena teatral e na luta antirracista em Belém foi decisivo como liderança negra movida por sua alma libertária .
    Bem vindo à terrinha! Ponho fé que você vai promover uma revolução cultural em Moscaw !!!

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    Publicado por Marly Silva | 26 de maio de 2023, 13:22

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