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Desmatamento, Ecologia, Extrativismo, Fazendas, Floresta, Grilagem, Pecuária, Política, Terras

Jornalismo/História – Fogo nas árvores, negócio na terra

(Texto de 1988)

Foi de fogo o verão de 1987, simbolicamente – e literalmente. Quase 80 mil quilômetros quadrados de floresta nativa arderam na Amazônia, segundo o levantamento anual do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial), contestado desde então, quando simplesmente não é ignorado. Seriam quatro vezes a média de desmatamento na região nas duas décadas seguintes.

Os fazendeiros destruíam a mata para criar benfeitoria. Tentavam assim se imunizar contra a ameaça de desapropriação dos seus imóveis para a execução da reforma agrária, como uma das principais políticas sociais do governo da Nova República.

Essa foi uma das mais violentas batalhas na Assembleia Nacional Constituinte, que preparava a nova carta magna do país, editada em 1988. Para travar a luta pela propriedade privada, sem a hipoteca social que sobre ela os constituintes pretendiam fazer incidir, foi criada a violenta UDR, a União Democrática Ruralista, de Ronaldo Caiado. A UDR, como uma Klu-Klux-Klan não-racial, espalhava a ira dos fazendeiros contra qualquer veleidade de ameaça aos seus registros imobiliários.

O confronto aberto mudou quando o ex-governador Jader Barbalho assumiu o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, no lugar do pernambucano Marcos Freire, que morreu na explosão do jatinho que o transportava, ao decolar da serra dos Carajás, matando todos os seus ocupantes. Os fazendeiros, que antes fugiam do Mirad como o diabo da cruz, passaram a frequentar o gabinete do ministro, em Brasília. Ao invés de cuspir bala à simples hipótese de desapropriação, agora ofereciam suas terras ao governo.

Mudaram os fazendeiros ou mudou o ministério? A resposta era óbvia: afinal, o ministro agora se chamava Jader Fontenele Barbalho, adestrado por quatro rumorosos anos como o chefe do poder executivo estadual no Pará. Nesse período, o que mais ele fez foi negociar: com todas as partes, com todos os objetivos.

Ao assumir o Mirad, encontrou sobre sua mesa o contencioso não resolvido com uma das mais poderosas elites rurais do Pará. Embora tratados como donos de castanhais, na verdade eles eram arrendatários de terras públicas, com grande concentração de castanheiras, sobretudo no vale do Tocantins.

A partir de Marabá, a capital da região, comandavam a coleta e transporte da castanha até Belém, sob regras rígidas, ao seu feitio, para seu lucro. Eram como senhores medievais nessas vastas áreas, impondo as próprias regras. Graças a elas, a castanha era um dos principais produtos de exportação do Pará, no final de uma fase de predomínio do extrativismo vegetal.

A Transamazônica, a colonização, as fazendas, os garimpos e a mineração, dentre outros agentes de uma imigração intensificada a partir da década de 1970, romperam seus domínios. Os castanhais eram invadidos por posseiros, grileiros e novos proprietários, contestando o domínio daquelas áreas e destruindo sua até então principal riqueza: a castanheira.

Antes que a situação ficasse totalmente sem controle, os influentes arrendatários trataram de colocar nos escaninhos oficiais um plano para desapropriar os 800 mil hectares do “polígono dos castanhais”. Para eles, não interessava o confronto da UDR: só o governo podia resolver seu problema, pagando-lhes para ter de volta as terras, que eram públicas.

A transação ficara emperrada por oito meses. Até que, em abril de 1988, o Diário Oficial da União começou a publicar portarias assinadas pelo novo ministro. Entretanto, ao invés de desapropriar, como era esperado, Jader simplesmente estava comprando os castanhais, numa prosaica transação de compra e venda.

Era como o golpe do nó Górdio ou o ovo de Colombo, um lance de sagacidade e esperteza do ex-governador, não percebido nem por seus mais violentos inimigos. Até hoje eles se referem ao fato como a “desapropriação” dos castanhais, sem perceber a sutil e decisiva diferença. Assim procedendo, deixavam de reconhecer os méritos do autor da iniciativa, um doutor Silvana, o gênio do mal nas histórias em quadrinhos do Capitão Marvel, com especialização fundiária.

Jader examinou o impasse: de um lado, os senhores da terra querendo tirar alguma vantagem antes da perda definitiva dos castanhais; do outro lado, o governo, imobilizado pela ofensiva da UDR contra tudo que parecesse expropriação, punição, perda de capital, ameaça à propriedade de origem divina. E decidiu pela solução inventiva, que lhe traria grandes rendimentos.

Com uma só tacada, trouxe para o seu redil político algumas das pessoas mais influentes na região do sul do Pará, cada vez mais decisiva (eleitoralmente e economicamente), como o clã dos Mutran, pagando-lhes um bom preço. Ao mesmo tempo, formou um estoque de terras para o assentamento de lavradores que nos nove anos anteriores viveram às turras com os donos dos castanhais. E, claro, ele próprio formaria seu estoque de capital à margem dos procedimentos regulares. Ainda se apresentaria ao público como o grande pacificador do polígono dos castanhais, tradicional área de conflito e tensão social.

Mas a operação não era tão grosseira e primitiva como seus críticos tentaram caracterizá-la posteriormente. Jader se preparou para enfrentar a reação da opinião pública, de que os preços pagos eram exorbitantes. Suas portarias se basearam num relatório da Secretaria de Recursos Fundiários do Mirad, comandada pelo ex-diretor do DER (antes de sua transformação em Secretaria dos Transportes do Estado), Antônio Brasil, que o acompanharia no Ministério da Previdência Social e no novo mandato de governador, até cair em desgraça e ser esquecido, em meio a acusações e processos, conforme a rotina do chefe (contra o qual, surpreendentemente, nunca se voltaram os ex-chefiados, fiéis à regra de ouro do silêncio).

Os valores definidos no relatório de Brasil guardavam coerência com os cálculos da Fundação Getúlio Vargas, estabelecidos em dezembro de 1987. Só que a partir daí o mercado de terras empacou ou até regrediu por causa das discussões sobre reforma agrária na constituinte. A deflação não se refletiu, porém, na pauta de valores do Mirad.

Além de ignorar esse relevante “detalhe”, o ministério estabeleceu seu parâmetro com base na compra, feita na mesma época, de outro castanhal, o Araras. Também deixou de lado, como impertinente, uma circunstância que pesou sobre os preços mais altos nesta transação: os índios Gavião ameaçavam bloquear a ferrovia de Carajás e atacar os colonos que ocupavam parte de sua reserva, a Mãe Maria, enquanto os posseiros prometiam reagir à bala aos índios.

O dono do Araras, aproveitando-se desse clima de beligerância, exigiu um preço bem acima do mercado pelos 6.744 hectares do castanhal. O Mirad absorveu o superfaturamento e pagou a quantia cobrada para ali colocar os posseiros e evitar o confronto, que prometia ser sangrento e iria causar prejuízo à Companhia Vale do Rio Doce, concessionária da ferrovia.

No caso do polígono, quem estava precisando de uma solução eram os donos dos castanhais, que viam os invasores à sua porteira e podiam ter que travar um desgastante litígio judicial, caso o Estado decidisse reassumir o controle da área, cedida por arrendamento. O conflito era latente, mas não iminente nem grave: ardia como fogo de palha, constante e devagar.

O ato assinado por Jader dizia que ele iria resolver definitivamente os problemas fundiários da região, que causavam (e continuam a causar) repercussão nacional e internacional. Também iria “manter a exploração extrativista em áreas que apresentem condições aceitáveis de produtividade, como forma de preservar o ecossistema e, consequentemente, evitar a esterilidade da espécie ‘Bertholetia Excelsa’, ali existente”.

Mas eram só palavras: o extrativismo já estava condenado. Mesmo que ainda pudesse ser salvo, essa não era, evidentemente, a forma correta de abordar o problema, como mostrei em várias matérias publicadas a partir do nº 18 do Jornal Pessoal. Na edição 19, da 1ª quinzena de junho de 1988, 5 das 8 páginas que o jornal então possuía foram dedicadas à administração de Jader no Mirad, sobretudo ao acordo sobre o polígono dos castanhais. Uma dessas matérias foi para a capa, com um desenho do meu irmão, Luiz Pinto, primeiro e único ilustrador do jornal, mostrando Jader como um mágico: sua varinha mágica transforma imóveis rurais em dinheiro.

Dizia a matéria, antecipando as criações que Jader faria incorporar à rotina das relações entre o governo e os proprietários rurais, numa aliança que incluiria outro político, de porte ainda maior, o vizinho maranhense José Sarney:

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       Elcione Barbalho ficou 48 horas sem falar com o marido ao saber que ele substituiria Marcos Freire, falecido num acidente de avião na serra dos Carajás, no Pará, em setembro do ano passado, como ministro da reforma agrária. Estava certa de que o Mirad seria a sepultura política de Jader Barbalho, que deixara o governo do Estado sem conseguir, até aquele momento, um cargo público capaz de mantê-lo próximo do poder. Passados oito meses, Elcione tem todos os motivos para mudar completamente de opinião. O Mirad se transformou num dos mais ativos e estratégicos ministérios do governo Sarney, em condições de manter seu titular sob o permanente noticiário da imprensa e pondo ao alcance de Jader um orçamento que representa mais de 100 vezes o que ele poderia movimentar como governador do Pará.

       A grande metamorfose dá ao ex-governador o direito de se considerar um verdadeiro alquimista moderno, ou um rei Midas, metamorfoseando em ouro (em moeda, conforme a atualização histórica) tudo aquilo em que toca. Depois que ele assumiu o Mirad, o presidente José Sarney elevou o limite de Títulos da Dívida Agrária, que são usados para desapropriar imóveis desapropriados pelo Plano Nacional de Reforma Agrária, de seis milhões para 100 milhões de TDAs. Esses títulos, que antes eram desprezados, agora têm até um mercado próprio de comercialização, porque dão rendimento equivalente ao das cadernetas de poupança.

Sarney também patrocinou a criação do Fundo Nacional de Reforma Agrária, com base na receita do Finsocial, que neste ano vai transferir ao Mirad 100 bilhões de cruzados, destinados ao assentamento de lavradores. O ministério conta ainda com outras fontes de recursos, inclusive seu orçamento próprio, de 30 bilhões de cruzados, em condições de se multiplicar se conseguir resolver alguns problemas administrativos.

Assim, Jader pôde voltar ao Palácio Lauro Sodré, do qual foi inquilino instável durante quatro anos, para dizer ao governador Hélio Gueiros que trazia dinheiro e soluções para os muitos e graves problemas fundiários do Estado. Era uma boa desculpa para o fato de, até então, o Pará não ter assinado o “convênio guarda-chuva”, que descentraliza a reforma agrária, dando aos Estados competência para executá-la (se terão dinheiro e capacidade técnica, é outra coisa, ainda não satisfatoriamente explicada).

       Na concorrida solenidade organizada no Lauro Sodré” para a assinatura de alguns documentos pelo ministro e o governador, Jader repetiu a frase dita um dia antes, em Marabá: em oito meses, desapropriou terras e assentou lavradores mais do que seus três antecessores no Mirad. Em poucas semanas, desferiu golpes de grande repercussão, como a compra de 230 mil hectares no “Polígono dos Castanhais”, e a desapropriação da Gleba Cidapar, em Viseu, a maior da Nova República, com seus 419 mil hectares.

       A safra, porém, está apenas iniciando. Técnicos do Mirad já estiveram no Jari para examinar a possibilidade de aquisição do famoso e fracassado projeto de arroz idealizado pelo milionário Daniel Keith Ludwig, um empreendimento que, depois de provocar tantos elogios imoderados, acumula prejuízo médio de cinco milhões de dólares ao ano. Seus atuais proprietários, à frente o “tycoon” brasileiro Augusto Trajano de Azevedo Antunes, querem repassar o arrozal ao governo, com a cantilena de que lavradores podem cuidar do plantio no lugar das máquinas, que tanto fascinavam “o homem mais rico do planeta”, a contumaz saudação da imprensa a Ludwig (falsa em vários sentidos).

       Também já uma equipe sondando uma solução para o igualmente fracassado projeto de colonização da Construtora Andrade Gutierrez em São Félix do Xingu, enquanto o processo de devolução (onerosa para os cofres públicos, naturalmente) dos 400 mil hectares vendidos – a preços favorecidos – pelo Incra à empresa encontram-se sob o sempre acurado exame do consultor-geral da república, Saulo Ramos.

       Com tantos e tão substanciais processos de desapropriação, acordo ou compra e venda transitando, o Mirad mais parece um pregão de bolsa do que uma repartição pública incumbida de reformar a terrível estrutura agrária brasileira, uma das mais distorcidas (pela predominância da grande propriedade improdutiva e especulativa) sobre a face deste planeta. Os observadores mais judiciosos até já apelidaram de “corredor do ouro” o acesso ao gabinete do chefe da Secretaria de Recursos Fundiários, o ex-diretor-geral do DER (Departamento de Estradas de Rodagem), Antônio Brasil. Ali podem ser encontrados proprietários de todo o país, interessados em oferecer suas terras para o Mirad comprar ou desapropriar, atitude que faz daquele espaço um Nirvana de harmonia, em contradição com o discurso demonológico da UDR, empenhada em maquilar a origem divina do direito de propriedade com um glacê de modernidade ideológica, que o dr. Plínio Correa de Oliveira, o “dominus Plinius” da TFP (Tradição, Família e Propriedade), ainda rejeita.

       São cada vez mais constantes as ofertas de negócios no balcão do Mirad, onde as transações costumam ser feitas – à margem dos estudos técnicos que os regulamentos agrários exigem – na base do “é pegar ou largar”. Outro dia, um suposto proprietário no Estado do Amazonas ofereceu nada menos do que 300 mil hectares de seringais, talvez estimulado pelo retumbante sucesso (para quem?) da desapropriação amigável do imóvel Vila Amazônia, em Parintins, para fazer reforma agrária onde não existe conflito ou sequer clientes dos assentamentos.

       Os técnicos do escalão intermediário do Mirad, soçobrados dos escombros das antigas siglas que foram sendo extintas ao longo do rosário de insucessos governamentais no setor, parecem ter desistido de tentar acompanhar o alucinante ritmo do ministro Jader Barbalho. Nenhum deles conhecia no Pará os textos do convênio sobre os castanhais ou do decreto de desapropriação da gleba Cidapar, trazidos pelo ministro na algibeira. Também ninguém sabia dos processos que devem ter levado o Mirad a definir a área a desapropriar na Cidapar ou que deveriam dar base à desapropriação da Fazenda Paraíso, em Viseu, com discutíveis 58 mil hectares. Tudo transita velozmente, depois de rápida ou demorada (conforme o interesse no caso) gestação na Seref, a secretaria comandada por Brasil, hoje o coração que bombeia sangue pelas artérias do Mirad.

       Com tanta ação e tão pouca reflexão em torno desses atos, predomina a desinformação entre os não-iniciados no assunto ou que não participam do reduzido grupo decisório. É um terreno fértil para que Jader Barbalho, o político hábil e sagaz, assuma o controle e se destaque. Ele conseguiu reunião em Marabá inimigos tradicionais, os posseiros e os donos de castanhais, e receber elogios tanto da UDR quanto do sindicato dos trabalhadores rurais de São João do Araguaia, Almir Barros, considerado o mais combativo da região (que até testemunhou, mesmo ignorando completamente o conteúdo do documento, o convênio do Mirad com o Estado para a compra e administração do espólio dos castanhais).

       Em Belém, Jader anunciou a desapropriação da Cidapar diante de mais de 500 lavradores da área, recrutados às pressas e transportados em ônibus pelo empresário e deputado federal (PMDB) Mário Martins. Raimundo Lira Santos, irmão do personagem mais famoso desse conflito, o lavrador e pistoleiro Quintino, cumprimentou Jader e almoçou com ele, parecendo sepultar a animosidade que resultara do assassinato de Quintino por soldados da Polícia Militar em circunstâncias nebulosas, mas sob a responsabilidade do então governador.

       Tantas decisões de impacto em tão pouco tempo podiam servir para explicar convincentemente sua ausência do Estado até então e acentuar sua dimensão de grande administrador (ou, quem sabe, estadista?) diante de um governador diminuído por não poder oferecer um poder equivalente em troca. Ao contrário, como que desautorizando as interpretações sobre desentendimentos mútuos, o governador Hélio Gueiros não poupou elogios e adjetivos a Jader. Recebeu com desproporcionada euforia e otimismo tarefas e acervos que ainda lhe irão dar muitos problemas, embutidos nos dois convênios assinados com o Mirad. Talvez porque ainda não fizera a absorção crítica do “pacote” que Jader trouxe hermeticamente embrulhado de Brasília.

       Uma semana com tão notáveis feitos seria o bastante para ampliar ainda mais a repercussão nacional do ministro e assinalar seu pleno retorno ao xadrez da política paraense, como o mais forte competidor. Mas um balanço atento do conteúdo do pacote que Jader aprontou nesses oito meses – e uma antevisão dos novos artefatos em preparo – pode levar a duas conclusões: o que aparenta não é exatamente o objeto original, mas sua forma distorcida ou falseada (nem tudo que reluz é ouro); o custo final do que o ministro tem feito será pesado – e não será pago por ele. Por essas duas conclusões, pelo menos uma coisa não se pode deixar de reconhecer no ex-governador: ele continua coerentemente sua carreira de administrador público.

Comentário

Comentário do geólogo Breno Augusto dos Santos: E todos os castanhais da região dos rios Itacaiúnas, Vermelho e Sororó foram destruídos.
Hoje, só há castanheiras nas Florestas Nacionais e na Terra Indígena Xicrin do Cateté.
A região ao norte da Serra Norte, até o Itacaiunas, era riquíssima em castanheiras. Quando voava de helicóptero, entre a N1 e Buritirama, ficava impressionado com a densidade de castanheiras.

Discussão

Um comentário sobre “Jornalismo/História – Fogo nas árvores, negócio na terra

  1. Quantos políticos já desapareceram, mortos por quedas de aeronaves? E juristas?

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    Publicado por pedrocarlosdefariapinto | 11 de junho de 2024, 10:26

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