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Economia, Estradas, Hidrovia, Indústria, porto, Transporte

Alça Viária: tudo ou nada

(Texto de dezembro de 2000)

No último final de semana o governo do Estado despejou pela imprensa cinco páginas inteiras de anúncios para defender a Alça Viária dos seus críticos, transformados pela propaganda oficial em autênticos inimigos do desenvolvimento do Pará, quase demônios (ou mais do que demônios?). Um dos anúncios conclamava a população a não permitir “que façam do Pará uma mala sem alça”. Já antecipando o que deverá ser a campanha eleitoral de 2002, termina com uma pergunta acusatória: “A quem interessa o atraso?”

A Alça Viária, que começa com um orçamento de 190 milhões de reais (e sabe-se lá por onde vai acabar, numa administração que não tem primado pela exatidão orçamentária), é uma das grandes obras que o governador quer inaugurar no seu segundo mandato, uma das alavancas para fazer o seu sucessor. Nada menos surpreendente do que ele reagir à sua maneira, despejando raios do seu trono, no Olimpo da Augusto Montenegro, contra os que não se curvam à sua vontade imperial. Mas o discurso estadual tem uma sensaboria que nos devolve quase literalmente à era do rodoviarismo e ao nefando modelo de desenvolvimento através de corredores de exportação, que exigiram investimentos pesados, mas deixaram tão poucos efeitos germinativos no território amazônico.

Não se há de querer manietar o governador, deixando-o indefeso aos ataques políticos dos seus adversários. Há um plano estritamente político nessa queda-de-braço, a exigir campanha de massa, propaganda, ataques contundentes, malícia. Mas há também um plano técnico a preservar.

Reagindo através da melhor defesa política, que é o ataque, ainda assim o governo não tem o direito de interditar um debate técnico aberto sobre a Alça Viária e seu suposto plano de desenvolvimento, através do Sistema Integrado do Leste do Pará. O confronto político acaba se tornando uma maneira de contornar o diálogo técnico e impor a obra como um tema de salvação estadual, aprisionando nos estreitos limites de um passionalismo de Remo e Paissandu.

Se tudo fosse realizado conforme os planos do governo, a Alça Viária não passaria de uma ligação física da capital paraense com o seu novo porto de carga geral, que será deslocado das atuais instalações, no cais da baía de Guajará, para o terminal (por enquanto especializado em granéis sólidos) de Ponta Grossa, em Barcarena. A cidade não poderia permanecer seccionada do seu porto por terra, uma anomalia em tese, independentemente da fundamentação econômica da ligação rodoviária.

A quem ela beneficiaria? Naturalmente, a quem precisa utilizar simultaneamente a cidade e o porto. O usuário preferencial seria o importador de bens e mercadorias a serem utilizados e comercializados em Belém. Essa carga passará a ser desembarcada em Ponta Grossa e será transportada para a capital utilizando a Alça, sem precisar embarcar em balsas para a travessia fluvial. Mas as principais demandas serão cada vez mais as dos “grandes projetos” de exportação, que usam o distrito industrial de Barcarena como sua base para receber insumos e exportar matérias primas e produtos semiacabados de alumina, alumínio e outros minérios.

Fazendo percurso inverso, o usuário seguinte é o elemento produtivo ou consumidor que mantiver relações com o porto ou dele precisar para embarcar seus produtos para fora, a partir de Belém, É duvidoso que a configuração atual da Alça Viária e do SILP resista a uma análise de custo/benefício ou a uma confrontação com formas alternativas de organização do transporte e da produção. Talvez nem tenha havido uma verificação de hipóteses.

A partir da premissa de que um elo físico entre a cidade e o porto é inquestionável, o esquema atual veio por gravidade, como derivação natural. Afastados, porém, os elementos políticos (ou simplesmente partidários) de perturbação da análise, evidencia-se a inconveniência do processo decisório adotado pelo governo para colocar sua obra como fato consumado.

Além de não ter havido um exame de alternativas, o projeto do governo ressente-se de estar desligado do contexto envolvente, embora seja apresentado como parte de um todo maior que irá incrementar o desenvolvimento estadual. No maior dos anúncios publicados, em página dupla, a Alça Viária é apresentada como integrada a um “projeto para o futuro”, ao lado do porto de Santarém (e da rodovia Santarém-Cuiabá), da PA-150 e das eclusas.

Mas esse “sistema” é apenas um desenho no papel, tendo sido ordenado e composto para efeito meramente argumentativo. A hidrovia do Tapajós, teoricamente muito mais eficaz do que a BR-163, nem é lembrada no desenho do governo. A hidrovia Araguaia-Tocantins é uma trilha pontilhada, que, na ausência da transposição da barragem de Tucuruí, termina em Marabá, deslocando-se para leste, até o porto de São Luís, no Maranhão. A participação do governo do Estado na luta pelas eclusas é decorativa.

Problemas de ordem variada, vinculados a processos produtivos em expansão (como os 500 milhões de dólares que ampliarão a escala dos polos de alumina-alumínio e de caulim) ou a regiões em decadência, umas por falta de infra-estrutura adequada, outras por exaustão das antigas funções, são simplesmente ignorados, como se um governo que renunciou ao planejamento, rigorosamente falando, controlasse as variáveis básicas em ação. O que está muito longe de ser a verdade.

Se o governo não quer considerar quanto custa o seu projeto para a ligação terrestre entre Belém e o porto de Barcarena, e qual o seu benefício, se proclama ser irrelevante o impacto negativo da obra, se interdita as hipóteses alternativas para a própria via rodoviária (cancelando ou mudando a localização da principal e mais onerosa obra de arte, a ponte sobre o rio Guamá) e se considera deletério examinar a alternativa hidroviária, mesmo que exigindo uma nova forma de abordagem da questão, então é claro que deve-se continuar a tocar a Alça Viária tal como está.

Mas para tanto é preciso voltar no tempo e esquecer o que se aprendeu, desde a década de 1970, sobre os aspectos negativos de uma estrada de rodagem na Amazônia, desde sua comparação ao transporte hidroviário, até os efeitos multiplicados (mas nem sempre perceptíveis de imediato, ou previsíveis) da sua existência sobre o solo, o clima, a flora, a fauna, a hidrologia, as populações nativas e as relações de troca da Amazônia com o mundo externo, das quais o Pará tem sido – como dizem os acadêmicos – um paradigma nada edificante.

Colocando a população diante de uma escolha maquiavélica, isso ou nada, o governo Almir Gabriel parece-se cada vez mais aos governos do regime militar, que abriram profundas chagas na região, muitas delas irreversíveis, a pretexto de, integrando-a a toque de caixa (ou de corneta & sabre), não permitir que ela fosse entregue ao pirata estrangeiro.

O pirata, de tapa-olho, paletó, beca ou bata, já estava aqui. Como vemos.

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