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Cultura, Memória

Cabanagem: dias de horror

Carta particular sem identificação publicada em duas edições do jornal O Verdadeiro Caramuru, do Rio de Janeiro, nº 35 e 36, de 27 e 28 de setembro de 1833. Relata os acontecimentos ocorridos entre 16 e 18 de abril de 1833, em Belém, conhecido como Revolta de Jales. Foi um conflito entre os que apoiavam a posse do novo presidente da Província do Pará indicado pela Corte, José Mariani, e os que eram contra. A contenda terminou com um grande número de mortos. A publicação traz novas revelações além daquelas que foram relatadas no livro de Domingos Antônio Raiol, Motins Políticos. A grafia foi atualizada.

O documento foi pesquisado por Ricardo Conduru e divulgado no seu blog Cabanagem Restaurada.

ADVERTÊNCIA DO BLOG – TRECHOS DESTE TEXTO PODEM SER PERTURBADORES.

(…) INTERIOR

Tínhamos resolvido não dar mais uma palavra sobre os sucessos do Pará; porém,  o Sr. Evaristo, com o seu fraseado de 23 do corrente, em sua indiática Aurora nº 819, na qual nos combate desapiedadamente como panegirista da S. M. I. o Sr. D. Pedro 1º, e como inimigo declarado da vergonhosa revolução de 7 de abril, nós vamos publicar uma carta daquela província escrita em 20 de maio por um paraense digno de toda a consideração, e sua leitura que fará sentir a falta de nosso Defensor Perpétuo encherá de horror a todos os brasileiros que amarem a sua desditosa pátria, ela fará detestar cada vez mais esse horroroso 7 de abril, e aos seus autores (inclusive o Sr. Evaristo) a vista do que passamos a expender.

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Amigo. – Se eu pretendesse narrar circunstancialmente todas as desordens desta malfadada província ocorridas depois de minha última carta, empreenderia certamente uma história dolorosa, que pela multiplicidade de objetos, e de coisas diferentes que a revestem, se tornaria quase impossível descrever; sobra dizer que depois de tantas, tão longas e insuportáveis calamidades, ela se acha há mais de um mês em bárbara, e sanguinosa revolução, e que os assassinos se estão a seu bel prazer mergulhando no sangue inocente daqueles já há muito tempo designados para vítimas dos punhais desses tigres incomparavelmente mais ferozes do que aqueles que irracionais se geram, e criam nos bosques deste outrora ameno país! Todavia, sempre direi alguma coisa acerca dos recentes e progressivos acontecimentos, se bem que já a este tempo eles aí devam constar. Releve alguma acrimônia que por ventura se possa encontrar em minhas expressões, em atenção a ser ditada pela profunda mágoa que dilacera um coração brasileiro que contempla a sua pátria nas bordas de insondável abismo!

No dia 25 de março, fez o Presidente Machado [José Joaquim Machado de Oliveira] publicar no – Publicador Amazoniense – (jornal da redação do façanhoso padre Batista [Campos]) o aviso do Ministro do Império de 12 de dezembro do ano passado, que é certamente um extrato fiel de nossos padecimentos, e que pela imparcialidade e justiça em que é concebido, muita honra faz ao Ministro seu autor; porém, esses mesmos sentimentos de humanidade e de justiça que se observam exarados no citado aviso, e que são capazes de comover o coração mais duro e insensível, foram os aparentes motivos a pretexto dos quais se pôs em ação o plano já há muito consertado (sirva-se portanto reler as minhas cartas anteriores) pelos infames traidores Machado, [Antônio Corrêa] Seara, Padre Batista [Campos], [João Batista] Camecran, Padre [Silvestre Antunes Pereira da] Serra, Manoel Sebastião e Nabuco, e por isso foi o mencionado aviso analisado atrevidamente pelo Padre Batista no Publicador (depois pelo Padre Serra na Luz), no qual clara e positivamente se convida o povo a uma formal rebelião! O Publicador nº 39 em que se acha o aviso e análise, foi distribuído grátis pela canalha, pelos quarteis militares, prisões, etc., na manhã do predito dia 25 de março, e de tarde foi o Manoel Sebastião receber do Arsenal Militar, por ordem do Presidente Machado, seis carroças cheias de espingardas, seu competente correame, e grande porção de cartuchos embalados em outras seis carroças, além de outra igual ou maior porção de armamento e munições que o mesmo Manoel Sebastião e Camecran já antecipadamente haviam recebido do mesmo arsenal, a título de armar a Guarda Nacional (aliás, os negros), e de outro igual número que o Seara levou para Palácio acompanhado de um parque de 8 peças com 800 tiros cada uma. À vista do que se lê nos supracitados periódicos; destes preparativos e de outros muitos; do grande número de assassinatos que se perpetraram nessa mesma noite, e dos insultos e ditérios que por toda a parte se prodigalizavam aos chamados caramurus e bicudos, qual seria a pessoa de bom senso que não conhecesse logo o fim a que tudo se dirigia? O tempo bem depressa o mostrou!  Todo o restante da quaresma, e com especialidade a semana santa se passou em contínuo sobressalto, e as principais famílias abandonando suas casas foram procurar asilo debaixo das bandeiras das nações estrangeiras! Emissários e ordens se enviaram para todos os pontos da província, e logo veremos para que fim!

Chegou o dia 6 do mês passado, e pelas 9 horas da manhã se juntaram à porta do Juiz de Paz da Freguesia de Santa Ana cerca de 50 moleques descalços (não sou exagerado), tendo a sua frente um dos filhos do Nabuco, que é sargento da Companhia de Municipais Permanentes, o Menincia (sic), e o Barros, ex-sargentos do batalhão 16 (este foi o chefe do motim do batalhão 24, em 24 de junho de 1830, e que ainda há poucos meses foi solto), dizendo que tinham que requerer ao Presidente: o Juiz de Paz, acompanhado com o seu escrivão com bandeira, se pôs à testa desta canalha a que deram o nome de povo, e se dirigiram ao Palácio do Governo, e aí foi apresentado ao Presidente uma requisição com 23 ou 27 assinaturas desconhecidas, redigida por ele mesmo, e pelos outros chefes do plano que já mencionei, contendo em substância o seguinte: que se não desse posse ao Presidente Mariani, Comandante das Armas Vasconcelos, e mais autoridades enviada da Corte; que se pedisse a conservação do Machado, Seara [Comandante das Armas], e ouvidor Figueredo (o chefe da revolta do Rio Negro), e que no caso de serem mandados os dois primeiros, fossem nomeados: Presidente Luiz da Cunha Moreira e Comandante das Armas Manoel Sebastião; que se proclamasse a Federação; que não fosse dissolvida a Guarda Municipal, ficando sem efeito as ordens que a tal respeito vieram do Governo Central; que fossem remetidos para o  Rio de Janeiro os presos pelos acontecimentos de 7 de agosto de 1831, e finalmente outras exigências de igual natureza, e somente próprias de espíritos agitados por uma ambição e vingança desmedida! O bom Presidente Machado, sensível a tão urgentes necessidades, convocou logo o Conselho Presidencial para deliberar sobre este objeto que ele chamou importante: reunido este, cresceu o número de cidadãos negros pela maior parte escravos, e todos descalços, e foi nesta ocasião que uma salva de 21 tiros na fortaleza da Barra anunciou a chegada das duas primeiras autoridades nomeadas para esta Província: o Conselho suspendeu a sessão, e o Presidente ordenou aos requisitantes que se fossem armar a casa de Manoel Sebastião: pouco tempo depois já se não via na cidade um só negro liberto e escravo que não estivesse armado com o armamento da nação, e municiado de cartuchos embalados, e três dias de assassinatos, e outros três de saque foi recompensa que os chefes da revolta ofereceram a estes bárbaros, e miseráveis ignorantes, iludindo-os assim com a promessa dos únicos objetos de suas mais caras esperanças, para os conduzir aos fins de sua ambição, e incomparável vingança lhes sugeria na esquentada mente! Então se despovoou a cidade de toda a gente limpa, que se foi abrigar nas casas estrangeiras (que logo se embandeiraram), e nos navios e canoas que se achavam no porto, levando consigo o mais precioso que possuíam e que as circunstâncias lhe permitiram pôr a salvo, e foram fundear ao mar das embarcações de guerra: de todos os rios e vilas próximas da cidade foi mandada vir por ordem do Presidente toda a gente de cor, e facínoras, que logo foram completamente fornecidos com armamento pelo arsenal militar, confiando-se a guarda  deste importante depósito, e a de todos os pontos, e ficando a capital entregue a esta canalha vil, bárbara, e imoral, que ao furor da má embriaguez, atroava os ares com gritos de morram os caramurus e os bicudos, e vivam os pilhas! No dia 7 pela manhã se tornou a reunir o Conselho para deliberar sobre a posse das autoridades, que decidiu, como se esperava, pela negativa, e à noite também se reuniu a sediciosa Câmara Municipal para o mesmo objeto, que decidiu no mesmo sentido: Manoel Sebastião, fechando a porta da sala da Câmara, e guardando as chaves da algibeira, disse, voltando-se para o Taquari (carcereiro) – Quando vier o Mariani, dê-lhe posse na enxovia – e este respondeu – melhor seria na forca! – Assim se passaram 10 dias formando-se diversas reuniões tão legais como as primeiras, e sempre decidindo pela negativa. Durante este intervalo, uma porção de brasileiros natos, e poucos adotivos, quase todos empregados públicos, se foram reunir no convento de S. Antônio: o Presidente teve disto notícia, e mandou ali o Tenente Coronel Cunha exigir que por escrito declarassem o fim para que ali se achavam: consta-me que responderam  com pouca diferença neste sentido – Que para obedecer a lei e as ordens da regência, em nome do Sr. D. Pedro 2º  – Não agradou esta resposta ao Presidente, e por isso se dirigiu pessoalmente ao dito convento, onde insultou, segundo dizem, aos cidadãos ali reunidos, e estes vendo que poderiam ser sacrificados, evitaram este risco retirando-se para as embarcações surtas no porto. Se o Presidente pretendesse obedecer às ordens do Governo Central, e dar posse ao seu sucessor, e o Seara ao seu, não lhe faltariam forças para se fazer obedecer: uma leve palavra de aprovação a estes cidadãos seria o sinal da reunião de mais de 3.000 homens brancos que se achavam embarcados e refugiados nas casas estrangeiras, e que por isso suspiravam; porém seu projeto era outro, estava encetado, devia concluí-lo.

Dissolvida essa primeira reunião, outra se manifestou em casa do negociante [Joaquim Afonso] Jales, não contendo mais de 23 a 30 homens, e ainda que no seu começo não tivesse por objeto outra coisa mais do que a própria defesa; todavia ela tomou um caráter mais importante pelas insinuações e promessa de cooperação da parte do Capitão de Fragata [José de Brito] Inglis. Comandante da corveta Defensora, que afiançou faria um desembarque com toda a gente que se achava no mar, logo que em terra houvesse rompimento para dar posse às autoridades: quase ninguém se persuadiu da palavra deste comandante; Jales porém foi mais fácil em acreditá-lo, e em o supor de boa-fé, e por isso não duvidou em confiar a sua vida e a sua fortuna à dolosa proteção de um homem, que segundo todas as aparências, só procurava perdê-lo; Jales tinha confiado todo o seu dinheiro, trastes de valor, os livros da contabilidade do seu comércio, créditos e recibos (como o declaram alguns de seus amigos) ao Capitão de Fragata Inglis, para ter isto em segurança a bordo da corveta do seu comando, e de nada disto havia clareza: morto este desgraçado, tudo passava a ser do depositário como aconteceu; o certo é que, ou fosse Inglis de quem o Jales se confiasse, ou fosse de outra qualquer pessoa, depois de sua morte nada apareceu.

Muito tempo havia que Seara e os outros da súcia haviam jurado a perdição de Jales, e se o não tinham conseguido, era por efeito de cláusula em que há mais de 10 meses vivia reconcentrado em sua casa: por isso muito estimaram achar uma ocasião que lhes prometia levar a efeito o projetado. Se Jales e seus companheiros, tão desgraçados como ele, tivessem tido menos valor, e mais soma de prudência, teriam certamente evitado a perda de suas vidas, retirando-se com antecipação para o mar como quase todos fizeram; porém, eles estavam iludidos com falsas promessas de coadjuvação, por isso não duvidaram arriscar-se, certos que fariam triunfar a lei e as ordens da Regência, se não fossem traídos como infelizmente foram; contudo, Jales nunca pretendeu romper sem ser agredido.

Logo que constou que em casa de Jales havia esta pequena reunião, foi ela cercada por ordem do juiz de Paz da Campina, por uma multidão de negros armados, que jamais deixavam de o injuriar de palavras, protestando-lhe que o matariam e a todos que com ele se achavam logo que saíssem à rua.

No dia 15 mandou o juiz de paz intimar-lhe que para objeto de segredo chegasse a sua casa. Jales sabia que saindo à rua era morto pelos negros que lhe cercavam a casa, e que ainda mesmo, caso negado, que escapasse deste conflito, não escapava de ir habitar a mais hedionda e pestífera enxovia da cadeia, de sociedade com os negros facinorosos que ali se achavam; além disto, reconhecia no juiz de paz um dos chefes da facção, e nestas considerações recusou obedecer a ordem do mesmo juiz, e este a pretexto de tal desobediência mandou reforçar o cerco da casa por uma forte patrulha de municipais: já em outras tenho dito que estes municipais são pela maior parte organizados com os soldados que foram lançados fora das fileiras da 1ª linha por suas condutas incorrigíveis. É para admirar que consentindo-se aos negros libertos e escravos andaram armados pelas ruas, insultando a honra nacional, e ameaçando a toda a gente branca com a morte, se proibisse com tanta restrição aos cidadãos brancos proprietários, negociantes e de uma conduta regular, que o estivessem dentro de suas próprias casas, para repelir as agressões de uma canalha vil, contemplada com espanto pelos estrangeiros para eterno labéu da malfadada nação brasileira!

No dia 16, dia do horror! Pela manhã cedo, passando o comandante Inglis por casa de Jales, disse aquele a este que não tivesse medo, e que ele ia para bordo: pouco depois saindo um homem de casa do mesmo Jales, foi logo morto pelos negros que lhe cercavam a casa, arremessando-se estes de improviso as portas dela para as arrombarem a golpes de machado: foi neste conflito que julgando-se perdidos os que estavam dentro, e tomando as palavras do Inglis por um sinal decisivo da sua proteção, romperam o fogo, que foi logo protegido por 6 ou 7 pessoas que se achavam em casa do negociante Coutinho, em linha diagonal com a casa de Jales. Tocou logo a rebate, e por ordem do Presidente Machado, e do comandante das armas Seara, foram aquelas casas atacadas pelas tropas de linha, por mais de 800 negros, e por um parque de grossa artilharia: os soldados presos por crimes de morte, revoluções, terceiras e mais deserções, muitos deles condenados a pena última, também foram armados pelo governo, e mandados para o ataque, e até hoje ainda se conservam soltos, armados, e cometendo os mais horrorosos atentados. Jales e Coutinho sustentaram corajosamente o fogo mais de uma hora; porém, vendo que não eram protegidos com o desembarque prometido, e considerando-se por isso traídos, se resolveu Jales a suspender o fogo arvorando na sua janela uma bandeira branca para declarar que eles e os seus se entregavam prisioneiros, e franqueou a entrada em sua casa; porém este fato nos desenganou, que para os bárbaros de nada valem as formalidades da guerra, nem os direitos da gente! O governo se aproveitou desta suspensão, e fez atacar as duas casas mais fortemente pelo fogo de mosquete e de canhão, que durou por mais de uma hora sem a mais leve resistência, até que se resolveu mandar entrar nas ditas casas, onde poucos se acharam mortos, tendo-se evadido os outros: só o desgraçado Jales se deixou ficar entregando-se a proteção dos seus inimigos, que recompensaram a sua confiança tirando-lhe imediatamente a vida com muitos tiros e estocadas, e dilacerando o seu corpo o lançaram à rua! Foram os dois quarteirões, em que estavam compreendidas as casas de Jales e Coutinho cercados, e não só os que tinham evadido da casa de Jales, mas todos os que foram encontrados nas casas dos mencionados quarteirões, foram cruelmente assassinados e lançados depois de mortos pelas janelas para a rua!!!…

(Continuar-se-á)

Jornal “O Verdadeiro Caramuru”, nº 36, de 28 de setembro de 1833, folhas 1 a 4.

INTERIOR

Continuação do nº antecedente.

CONCLUÍDA a primeira barbaridade, outra mais cruel se lhe seguiu. Magotes de assassinos se espalharam por toda a cidade. E suas imediações, dando tiros ao acaso que cruzavam em todos os sentidos: as casas foram arrombadas a machados, e seus infelizes donos (aqueles que se deixaram ficar na cidade) assassinados no seio de suas inocentes famílias e lançados à rua! Os templos não foram isentos dessa barbaridade: muita gente foi morta mesmo de joelhos ante os altares; e um até abraçado com a imagem do Senhor Jesus dos Passos no seu altar em Santo Antônio! Todos os jornaleiros, carroceiros, carniceiros, e outra gente que já não achou lugar nas embarcações, foram caçados pelos bárbaros (frase de que eles mesmos se serviam), assassinados e deitados à rua: a mesma desumanidade se praticou pelas praias com aqueles que iam fugindo para as embarcações, e isto à vista de 2 corvetas, 2 escunas, e barcos de guerra fundeados no porto, e insensíveis a tudo! De nada valeu os choros das esposas e dos inocentes que de joelhos com a imagem do senhor crucificado pediam aos bárbaros a vida dos seus pais e esposos. Deus está no céu e nós aqui, eis a resposta deles, e os desgraçados eram cruelmente assassinados, e lançados à rua com a proibição de serem enterrados! Os ouros, e mais joias que as senhoras dos assassinados estavam enfeitadas foram saqueadas com violência e impropérios, e se estes tinham relógios ou anéis lhos tiravam cortando-lhes os dedos! Não achando os bárbaros a mais ninguém que matar, se contentavam em dar estocadas nos cadáveres que nos montões juncavam as ruas, cortavam-lhes as cabeças, os braços, as pernas, as orelhas, enfim faziam-nos em pedaços, e com estas relíquias da humanidade atiravam uns nos outros, sendo para notar que tantos estes atentados como os assassinatos foram praticados ao som de desconcertadas gargalhadas, e de vivas ao Seara, Batista e companhia, aos pretos a aos pilhas! Tendo sido de dia arrombados a machado as portas das casas de negócio, de noite foram muitas delas roubadas! Três dias e três noites sucessivas (16, 17 e 18 de abril) se passaram nestes horrores, vendo-se a carne humana em pedaços na boca dos cachorros!!!!….

O mau cheiro que exalavam os corpos mortos começavam a empestar o ar, e talvez isto não resolvesse ao governo a mandá-los enterrar: abriu-se no mato perto da cidade uma grande vala para receptáculo dos corpos destes desgraçados, e doze carroças foram empregadas neste serviço um dia inteiro, sem que fosse permitido até hoje fazer-lhes o mais pequeno sufrágio: a casa da Misericórdia quis tratar do enterro de Jales por ter nela ocupado os primeiros cargos; porém não lhe foi permitido! É porém para notar que morrendo 5 homens de cor da parte dos revolucionários, incluindo um que por seus bons feitos havia sido quatro vezes castigado com surra na grade da cadeia, tivessem estrondosos enterros, acompanhados pelo governo, guardas de honra com música, dobres de sinos grandes em todas as igrejas, inclusive a catedral, ofícios, e finalmente luto, e isto ao tempo em que aqui chegou a notícia infausta da morte da princesa D. Paula, que até hoje nenhuma demonstração de sentimento tem merecido da parte do governo!

Um caso ainda mais horroroso do que todos que tenho referido, é o que passo a expor: um brasileiro adotivo com mais de 30 anos de residência nesta província, casado com uma paraense, com 8 filhos também paraenses, pobre, e que havia já longos anos em que jazia paralítico no fundo de uma cama, havia, até ao dia da condução dos corpos mortos para a vala, escapado ao furor dos malvados, talvez que ignorado por motivo de sua prolongada moléstia e pouca fortuna, foi finalmente descoberto nesse dia pelos bárbaros: fizeram estes energúmenos parar à porta da casa do miserável homem um dos carros cheios de corpos mortos, entraram dentro dela, e sem os comover os dolorosos gritos da mulher e dos filhos, que de joelhos, por Deus, pelo Imperador, pelo Brasil, e por tudo pediam a vida de seu maior, agarraram no infeliz, arrastaram-no para a rua, e ali lhe cortaram (com muita gargalhadas) os braços e pernas, e assim mutilado, e ainda vivo, o meteram no carro, colocado entre os mortos, em postura de quem estava assentado, e assim o conduziram pelas ruas da cidade até a vala onde o lançaram conjuntamente com os mortos: pediu o desgraçado que pelo amor de Deus o acabassem de matar; porém os bárbaros dando gargalhadas lhe diziam que experimentasse o valor dos brasileiros, como se os brasileiros fossem bárbaros, e o valor consistisse na covardia de assassinar a sangue frio a homens desarmados, e enfermos! Tendo-se metido a noite deixaram os corpos na vala sem os enterrar, e no dia imediato indo-lhes lançar terra, acharam ainda respirando o infeliz, que foi assim mesmo vivo enterrado, causando horror à natureza os ais e lamentos deste, e as gargalhadas e as zombarias dos bárbaros!

Na presença do presidente Machado foi muita gente assassinada, e muitas pessoas que este prendeu e mandou para a cadeia, foram em caminho também assassinadas pelos guardas que as conduziam, participando estas depois às autoridades que já lhe haviam dado passaportes! O número dos assassinados nesta cidade nos 3 dias, excede a 200, e não 50 e tantos como falsamente o publicam os periódicos desta, todos redigidos pelos chefes dos assassinos, e não se diga que só portugueses foram assassinados; porém sim brasileiros natos, e adotivos, ingleses, franceses e espanhóis, chegando o atrevimento de um soldado (esta classe pela insubordinação e relaxação em que a tem posto o seu primeiro chefe, é o verdugo, o mais cruel desta província) a despedaçar  e pisar uma bandeira francesa que se achava arvorada na casa de um cidadão desta nação. Por estes atentados sei que os respectivos cônsules passam a dar conta aos seus governos, requisitando embarcações de guerra para os proteger, achando-se já neste porto uma corveta inglesa vinda de Maranhão a toda pressa, por ter ali chegado a notícia destes espantosos sucessos.

Consta-me que na ocasião dos assassinatos, o comandante da corveta 7 de Abril oficiara ao Presidente em termos bem expressivos, e que o seu ofício fora recebido de muito mau grado, e sei com certeza que os cônsules se reuniram nessa ocasião, e incorporados se dirigiram ao Presidente representando-lhe que o comércio de suas respectivas nações padecia inconsiderável perda com a morte dos negociantes brasileiros, e a resposta do Presidente foi – tudo está nas mãos do senhor Mariani, em ele se indo embora tudo acaba, e eu mandarei desarmar a gente – assim aconteceu quanto ao desarmamento, porém os assassinatos ainda até hoje continuam, e não sei como o Presidente os pode agora evitar, visto que tudo está em desordem. O interior está revoltado no mesmo sentido da capital, e os assassinatos que temos notícias haverem-se feito pelas imediações e vilas próximas desta cidade, já passam de 300. Magotes de vadios cruzam os rios e matos, caçando, como eles dizem, caramurus e bicudos; e como esta caça já vai sendo muito rara neste país, e eles muitas vezes a procurem em vão, zangados disto, tem já sucedido encontrar-se com outros que andam na mesma diligência, e fazerem fogo uns contra os outros, para se não recolherem – panemas (sem fortuna) – depois juntam-se em boa harmonia, cantam uma ladainha, dançam, embebedam-se e continuam no moto contínuo! Tais são as consequências, que sem falência, resultam das deliberações de um governo, que se aparta da vereda da justiça.

Tudo, porém, que tem acontecido ao infeliz Pará nada é em comparação do mal que se lhe prepara! Os negros estão sumamente atrevidos, andam aos montes pelas ruas de dia e de noite, insultando a torto e a direito, e gritando – Vivam os pretos, e a quem deles descendem – dizem bem claro, e positivamente que foram enganados, que quando os convidaram para pegar em armas, lhes prometeram em recompensa três dias de matança, três dias de saque, e a liberdade, e que por fim não houve saque. Que o governo consentiu (é falso) que os caramurus e os bicudos se refugiassem a bordo das embarcações para não serem todos mortos; que finalmente ficaram escravos, e tão pobres quanto dantes, e que só os chefes da revolta e seus principais agentes se aproveitaram, e estão aproveitando (verdade pura), dizem que querem ver cumpridas aquelas promessas, ou que aliás não pouparão a vida de ninguém, nem mesmo das mulheres e crianças brancas. O governo começa a assustar-se com esses ditos, mas não se atreve a dar ordens para os obstar; todavia, o Presidente tem feito agora armar alguns paraenses honrados, mas estes dizem que não estão para servir de degrau, que sabem que os armam para servir os intentos de um partido desorganizador, e sujeitá-los aos chefes de rebelião, e que em tais casos tratarão de se pôr a salvo logo que haja algum rompimento, pois que não estão para defender aqueles que há mais de um ano não fazem mais que massacrá-los.

Já se não pergunta aqui que carga levam as embarcações. Os brasileiros natos e adotivos, sem fundos, são agora os melhores gêneros de exportação que há desta província para as outras do império, e para os países estrangeiros! Bom é isto, o Brasil superabundante de habitantes e riqueza, é necessário aliviá-lo de tanto peso, exportando homens e dinheiro. Outros países menos populosos e menos ricos receberão com os braços abertos a estes supérfluos do Brasil! A nossa política pode chamar-se a impolítica das nações cultas, e assim deve ser, para nos diferenciar dos outros povos…

Eis aqui em resumo uma breve história dos últimos acontecimentos desta província, e a que os infames demagogos querem aqui apelidar de agressão lusitana, para colorir uma barbaridade, e caminhar no seio da confusão, e envolto nas trevas, ao complemento de sua desmedida ambição e, na verdade, o meio de que para isso se servem é bem fácil, contanto que se não esqueçam do sistema que todos eles têm adotado, isto é, liberdade na boca, tirania e despotismo no coração e nas obras; porém –

Tortuosos sofismas

Deslumbram, mas não podem

Da verdade extinguir a luz brilhante

N.B. A farinha subiu de 400 rs a 4$ rs o alqueire, uma quarta parte moinha de cavalo (casca de arroz), e a fome promete devorar tudo.

P.S. Parece que o governo central está disposto de propósito a enredar os negócios desta província, e o mais é que agora não tem desculpa com que possa justificar-se, visto que está há muito tempo ciente dos nossos desassossegos e dos motivos deles. O Ministro de Guerra ordenou que os oficiais presos pelos acontecimentos de 7 de agosto de 1831 fossem julgados aqui pelo conselho do júri! Eis aqui este Ministro constituído um déspota, infringindo a constituição, e as leis, e constituindo-se em Conselho de Guerra, 1º. porque manda julgar os comprometidos em juízo incompetente, 2º. porque só ao Conselho de Guerra compete declarar se o caso do 7 de agosto é dos excetuados, e tem perdimento de forro, 3º. porque contra a constituição faz retrogradar a lei, mandando que um caso praticado em 7 de agosto de 1831 seja julgado por uma lei feita muito depois disso! E é assim que queremos ser livres, e que o governo central deseja o sossego das províncias, assim nem uma coisa nem outra se conseguirá nunca!  Ora, pois, venha mais esta peste e sejam os militares a arbítrios do Sr. Ministro da Guerra julgados por uma quadrilha de ladrões e assassinos que são os que presentemente compõem os jurados! Deve-se infalivelmente contar com uma sentença cruel, cuja publicação será o sinal da completa aniquilação do Pará.

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