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Memória, Militares, Política

Arigós – Aconteceu na Amazônia

Paulo Faria

2ª estação

“Será que esse é o meu pai?”
Me tiram do berço. Me põem no colo. Agora estou no colo de outra pessoa. Também não sei quem é essa simpática mulher. Ela me põe na rede. Cobre tudo com o azul do mosqueteiro.
Me balança, balança, balança…

“Vamos descer ali naquela clareira!”
“Major, ali não tem como pousar!”
“Ali é o melhor lugar!”
“É muito arriscado!”
“Vamos descer! Será ali que construiremos a nossa pista de pouso, acredite!”
“Isso é uma loucura! O senhor vai colocar em risco toda a tripulação! Vamos morrer todos…”
“É uma ordem!”
“Tudo bem. Vamos descer! Seja o que Deus quiser…”
“Atenção, tripulação, vamos descer num pouso de risco! Silêncio!!
Mas acreditem! Vamos conseguir! Quem tiver fé, reza. Quem for ateu, pode pular! E que nossa Senhora da Conceição nos proteja.”
O futuro brigadeiro Haroldo Veloso abriu na marra um campo de pouso em Jacareacanga, fazendo aterrisagem forçada numa clareira para construir uma pista de pouso que iria servir de apoio aos voos entre a capital federal, o Rio de Janeiro e Manaus. O avião ficou destruído, mas ele cumpriu a missão, que o consagraria.

No bar mocorongo, seus olhos cerrados, como se fosse buscar dentro de si o momento exato daquele pouso.
Os urubus partiram sem ele notar.
Um cheiro de café vem de dentro do bar.

Por um instante o pensamento voa para o ano de 1956, em Aragarças, no estado de Goiás, onde comandou uma revolta contra o então presidente JK. O alvo imediato era JK, mas Haroldo e seus parceiros da conspiração visavam um alvo mais longe, no passado, outro ex-presidente da república, Getúlio Vargas.
Quando o derrubaram do governo, em 1945, julgavam-no acabado. Como uma fênix, ele voltou, cinco anos depois, pelos braços do povo. Getúlio era um estadista, tinha fibra, era diabolicamente sagaz. Respondeu com seu suicídio, atiçado por uma carta de denúncia, que era o seu programa de governo para depois da morte. A carta lhe deu perenidade, imortalidade. A prova foi a vitória de JK, em 1955, que empunhava o programa.
Neste ano, Haroldo, numa outra aventura, sequestrou um avião.
Aproveitou a popularidade que tinha no coração do Brasil, por onde circulou como capitão, major e coronel da FAB, transportando pessoas, prestando serviços, fazendo amigos, e tentou realizar ali a primeira tentativa de criar um foco de sublevação das forças armadas, a partir de uma área ocupada no Centro-Oeste, falhara.
Não houve a comoção esperada quando sequestrou o avião e partiu com alguns comparsas armados. Entretanto, teve tempo para aparecer em vários lugares da região como um homem que se devia admirar.
O fracasso foi agravado pela pronta anistia que JK concedeu aos revoltosos, não deixando que eles se apresentassem como vítimas. JK era tão esperto quanto seu falecido padrinho.

Busca novamente outro gole dentro do bar, e vê as bolas do bilhar paradas no último jogo, com as caçapas vazias. Ninguém ganhou. Passa os olhos em todos os detalhes do estabelecimento. Tentava distrair a mente. Em vão.
“Quer um café?”, vem uma voz de dentro.
Haroldo olha novamente para a folhinha na parede, o calendário estampa o símbolo do partido no poder, a Arena (Aliança Renovadora Nacional). Ele deu de presente ao amigo. O partido ao qual se filiou. Entrando para a política, lugar que sempre combateu.
O Arena era o partido que os militares criaram depois do golpe de 1964, para manter a aparência de normalidade ao Brasil aos olhos do mundo e da política brasileira, fazendo o povo acreditar que novamente o poder lhes seria devolvido, como nos golpes de 1930 e 1945.

Haroldo toma mais um gole de cerveja e retira o revolver da cintura, confirma as balas no pente, e volta a guardar a arma, enfiada no cinto da calça de brim cáqui. Ação que fez por várias vezes naquele início de tarde.
Ele se elegeu em 1966 deputado federal, o menos votado da sua legenda, e não teria ido para Brasília se não tivesse tomado uma decisão importante: denunciar as manobras que estavam sendo armadas, pela terceira vez, para impedir que Elias Pinto, candidato pelo MDB, se elegesse prefeito de Santarém.
Graças à conivência do juiz local, Manoel Cacela Alves, e ao processo mais usado para fraudar a votação, o “emprenhamento”, que consistia na violação da urna para enxertar cédulas viciadas. Perdendo assim as eleições de 1958 e de 1962, depois de ter sido o deputado estadual mais votado do município, e o 6º do estado, em 1954. O método seria usado para favorecer o engenheiro Ubaldo Correa, o vencedor em 1958. Jovem engenheiro, integrante de uma das famílias mais tradicionais da terra, bisneto do Barão de Tapajós, conservador, reacionário, além de contar com o poder político da situação, tinha poder econômico, o apoio de fazendeiros, firmas exportadoras e comerciantes.
 Contra ele, se apresentou outra liderança jovem, mas de perfil não só distinto, como oposto, que fundou uma nova força política a do PTB, principal herdeiro da mensagem de Getúlio Vargas. Filho de migrantes nordestinos, os arigós – como eram pejorativamente chamados, vindos do Ceará, e apenas com o curso primário incompleto, Elias Pinto fez uma carreira singular: foi professor de inglês, fotógrafo, primeiro locutor esportivo de rádio, presidente da Congregação Mariana, secretário da prefeitura e deputado estadual.

Os 3 urubus voltam para a soleira. Haroldo olha e acende outro cigarro. Dá o primeiro e longo trago, saindo com a fumaça uma lembrança, que surge à sua frente como se entrasse pela porta, na luz forte que vem ao bar, através da persiana da cancela na porta, como de uma lanterna mágica. E Haroldo na tela da história.

Num comício, durante a campanha, Haroldo denunciou a trama para que Elias, certamente o mais votado, perdesse mais aquela eleição, a terceira seguida. Isso fez que ele rompesse com o partido, mas se manteve como candidato.
Haroldo se tornou deputado federal, na mesma eleição em que Elias conseguiu a maior vitória para prefeito da história de Santarém.

Elias era meu pai.

Discussão

Um comentário sobre “Arigós – Aconteceu na Amazônia

  1. enquanto na amazônia do maranhão

    mais desmatamento e mais violências:

    que esperar de falsos comunistas
    novos donos do poder no estado
    se quem mais sofre com a judiaria
    é também militante do mercado?

    o planeta só não se esgotou ainda
    porque os miseráveis não o podem
    gastar mais e mais como consumistas
    restando-lhes o lugar de quem se fode

    vi o cerrado de perto pra contar de certo
    e pelo agro-negócio não haverá cerrado
    só seu lucro que destrói – e isto é certo
    tal como a desumanidade do mercado!

    os de baixo seguirão os alimentando
    tanto pelo voto como na cumplicidade
    em não reagirem unidos se rebelando
    seja no campo seja na grande cidade

    basta ver a bancada de deputados
    que este mesmo povo sofrido elege:
    bandidos da bala da bíblia e do agro
    como para o senado – que não se negue

    deus igrejas mercado religiões e estado
    formam o quarteto útil do desmatamento
    que são biombos destes desalmados
    senhores de bem e seus privilegiamentos

    o povo reflete tal bancada e vice-versa
    assim se equivalendo e se merecendo
    os de baixo sendo levados como merda
    e a natureza reagindo em desdobramento

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    Publicado por felipe puxirum | 11 de junho de 2024, 15:52

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