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Imprensa, Política

A galera do fundão chegou ao Congresso

Wilson Gomes / Folha de S. Paulo

Tenho falado muito sobre a degradação do debate público nacional e como isso
reflete tanto uma espécie de “balcanização” da esfera pública quanto
a perda da crença coletiva em valores como tolerância e pluralismo.

De um lado, vemos um claro processo de fragmentação política que desagrega
grandes blocos ideológicos em unidades menores e altamente hostis entre si; do
outro, assistimos à substituição dos valores fundantes da democracia pela
ilusão de que o outro lado, o lado “errado” da força, ainda pode ser vencido,
neutralizado ou incapacitado.

Episódios ocorridos na semana passada, entretanto, mostram outra face,
complementar, dessa história: a deterioração do debate parlamentar.

Na quarta-feira, as reuniões da Comissão de Direitos Humanos e do Conselho de
Ética da Câmara dos Deputados nos deram amostras excepcionais de como
a rivalidade política, ao alcançar uma fase exibicionista, está superando até
mesmo as barreiras impostas pelas liturgias e etiquetas das casas legislativas.

No noticiário profissional, o foco principal foi a troca de ofensas, ameaças e
empurrões, não a pauta dos dois espaços parlamentares. Enquanto isso, o
noticiário que de fato tem público, produzido pelos editores políticos e
sociais, entregou em milhões de celulares as várias versões dos eventos
registrados durante as sessões da Câmara. Insultos, lacradas, dedos na cara,
tentativas de agressão, tudo compilado em vídeos de 30 segundos devidamente
editados e legendados.

Deem uma olhada no YouTube e deliciem-se com títulos como “Nikolas
Ferreira faz comentário transfóbico contra Erika Hilton”, “Erika
Hilton faz chacota com aparência de mulher: ‘vai hidratar esse cabelo’”,
“Confusão marca sessão na Câmara”, “Deputado comete transfobia”,
“Deputado toma invertida”, “Deputada X esmaga o deputado
Y”.

O que esses títulos de vídeos dizem ao brasileiro comum me parece cristalino:
os bagunceiros do fundo da sala chegaram ao Congresso Nacional.

Numa participação no podcast “O Assunto”, de Natuza Nery, Fernando
Gabeira creditou esse comportamento à hegemonia das redes sociais na
comunicação. Na verdade, trata-se de hegemonia na cobertura da política.

Gabeira considera haver método nessa conduta, que consiste em continuamente
produzir controvérsias para levá-las às redes sociais. E sustenta a hipótese de
que a busca por likes é uma forma encontrada pelos novos parlamentares de
manter ativa sua conexão com sua base.

Gabeira não está errado, mas as redes sociais não são a causa de uma nova
mentalidade; são parte dela.

Temos no Congresso Nacional e na sociedade uma geração que cresceu e se formou
politicamente em ambientes digitais, principalmente no YouTube, e são fluentes
nos seus dialetos e consumidores das suas formas estéticas. O universo
narrativo nerd ou geek, de onde vem tudo isso, tem origem no mundo dos vídeos,
dos games e dos memes e cultua tanto uma estética de irreverência grosseira
quanto uma atitude iconoclasta e afrontosa.



A diversão é gerada por
um tipo de humor baseado no escárnio, a zoeira. Seu herói é um sujeito de
raciocínio rápido e afiado, irreverente e com respostas desarmantes. Como
método, valorizam o desrespeito ao politicamente correto, se são de direita, e
a resposta violenta e humilhante ao opressor, se são de esquerda.

Esse público é ávido por vídeos e memes que registrem a política como luta na
lama, as disputas parlamentares como brigas de gangue, os discursos e insultos
dos deputados e senadores como uma competição por lacradas e humilhações.

Por outro lado, houve muito pouca coisa na quarta-feira passada que remotamente
lembrasse o que a teoria democrática chama de “deliberação pública”.

Trocam-se ofensas, não razões; ganha quem consegue a sentença que desarma o
adversário, deixa-o sem reação, não quem formula o melhor argumento. Não se
busca apresentar razões universais como patamar aceitável por todos; a ofensa
deve ser personalizada e diretamente endereçada ao nervo exposto do inimigo.

Ninguém se obriga a ouvir e considerar o que os outros têm a dizer; a meta
consiste em impedir que digam algo ou que sejam ouvidos por alguém. O insulto é
muito mais eficaz que o argumento, porém é menos eficiente que o ato
performático de empurrar, meter o dedo na cara, ameaçar descer o braço.

Sobretudo, nunca se deve esquecer da regra de ouro: o público que importa não
são os presentes no recinto parlamentar, mas os que estão esperando as lives e
as edições dos highlights das lacradas para, por sua vez, usá-las em suas
brigas de rua nas quebradas digitais.

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Wilson Gomes
Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de
“Crônica de uma Tragédia Anunciada”



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