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Corrupção, Governo, Grandes Projetos, Sudam

Memória – Ou vai, ou racha

Texto de dezembro de 2000

A Sudam nunca esteve tão ameaçada quanto agora. No meio do tiroteio violento que os senadores Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho travam, é apresentada na imprensa nacional como um covil de ladrões. Mas esta pode ser a hora adequada para apurar tudo, corrigindo velhos erros, recompondo um conceito técnico e moral. E, separando o joio do trigo, identificar quem é que, por integrar quadrilhas, deve estar em outro lugar que não uma agência de desenvolvimento. Se possível, na cadeia. Com colarinho branco e tudo.

A Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, sediada em Belém, chegou aos 36 anos de existência mais próxima do fim como nunca antes. Bem podia ser extinta (ou, quem sabe, fundido com o Banco da Amazônia, antigo projeto de muita gente entrincheirada em Brasília). E, também, como em nenhum momento anterior, mais próxima de se salvar.

Em consequência da guerra selvagem que o senador baiano Antônio Carlos Magalhães, do PFL, um dos homens mais poderosos da república, trava com o indesejado candidato à sua sucessão na presidência do Senado, o paraense Jader Barbalho, presidente nacional do PMDB, a Sudam foi colocada na ribalta como um covil de ladrões, uma Madalena exposta à execração pública como a mais viciada instância do governo federal.

A causa imediata seria a dilapidação de algo em torno de 300 milhões de reais do erário, fundo formado pela renúncia fiscal em favor da implantação, na Amazônia, de projetos que só vêm para a região por serem subsidiados (no caso, pelo leão do imposto de renda), empreendimentos eivados de irregularidades e vícios.

Há a suspeita de que muitas das falcatruas tenham servido de instrumento para desviar dinheiro público para caixas dois, seja de empresas fraudadoras, como para políticos que promovem campanhas milionárias sem correspondência com seus meios legais. Na convergência desses dois atalhos, possibilitando a formação de patrimônios pessoais inexplicáveis, senão através do enriquecimento ilícito. Ou, como se costuma dizer, assaltando a viúva. Isto é, o governo.

Na versão do senador baiano, o maior beneficiário desse desvio de verbas é o seu desafeto, hoje inimigo mortal (o que está próximo de deixar de ser uma figura de retórica, tal a violência das escaramuças entre ACM e JB), suserano das extensões locais dos ministérios dos transportes e do desenvolvimento regional, que couberam ao PMDB na partição do poder entre os aliados dos tucanos.

Como o senador paraense jamais se defendeu satisfatoriamente das suspeitas suscitadas (e mesmo dos ataques diretos) sobre seu sucesso pessoal à sombra de cargos públicos, sem uma exata equivalência patrimonial, sua costa é suficientemente larga para se tornar alvo fácil para qualquer atirador, mesmo os menos destros (como um conceituado jornalista baseado em Brasília, agora seu maior acusador. Gualter Loyola colocou no currículo de Jader a superintendência da Sudam, que ele jamais ocupou.

Se o truculento senador pefelista tem razão, que o ex-governador do Pará responda por seus atos e pague por seus pecados. Mas a Sudam antecede a Jader Barbalho e deve sobreviver a ele. Não pode, portanto, se reduzir a ele. Por mais que o líder peemedebista tenha sido o condestável das gestões mais recentes e se haja prevalecido dessa força para benefício próprio, erros e acertos do órgão formam um acervo muito maior do que os produtos da safra jaderista.

Desde o dia 11, a Sudam está sendo passada a limpo por um grupo de auditagem enviado de Brasília, com prazo de 90 dias para apresentar o resultado das apurações. O foco são os 25 projetos e os R$ 300 milhões que receberam. Mas as irregularidades podem chegar ao dobro desses números. Não importa: a preocupação na Sudam neste momento deve ser a de colocar toda a roupa suja para lavar, sacrificar tudo o que precisa ser sacrificado, cortar na carne o mais fundo que for necessário, se esse é o preço para restabelecer a autoridade técnica e moral da instituição. Para livrá-la da marginália parasitária nela introduzida.

Todas as suas misérias e desacertos precisam vir a público para que o órgão seja avaliado como tem que ser uma agência de desenvolvimento regional, por sua visão estratégica da região, pelos mecanismos que adota para alcançar seus objetivos, e não por ser um balcão de negócios, um mercado de oportunidades.

Ao mesmo tempo em que as fraudes são exaustivamente divulgadas pela imprensa nacional como casos de polícia, mesmo (ou sobretudo) quando envolvem personagens ditos notáveis, a Sudam está começando a discutir a versão preliminar do documento “Construindo o futuro da Amazônia – Estratégias para o desenvolvimento sustentável (2000/2003)”.

Há cinco anos a Sudam tenta e não consegue montar um plano de desenvolvimento capaz de merecer essa conceituação. Não tem ido além de aproximações precárias. A rigor, o último plano foi o II PDA (Plano de Desenvolvimento da Amazônia), elaborado para ter vigência entre 1975 e 1979, durante o governo do general Ernesto Geisel. Foi o apogeu da forma tecnocrática de conduzir a administração pública federal.

O objetivo era fazer da Amazônia um polo de exportação, uma fonte das escassas divisas em moeda estrangeira de que precisava um país que se endividara além da conta. Era um plano claramente colonialista. Mas, a partir dessa diretriz, funcionava, era consequente. Podia ser combatido a partir da premissa de que o que estava dizendo era o que pretendia realmente fazer.

O condutor da Sudam naquele período está de volta à superintendência, duas décadas depois. O nordestino Hugo de Almeida passou 40 dos seus 66 anos na administração pública, cuidando principalmente da ação regional do poder central em duas fontes permanentes de problemas (e de esperanças): o Nordeste e a Amazônia. É um típico técnico federal, mas tem sensibilidade política, inclusive para granjear apoios que eram liminarmente descartados, numa época em que o poder era exercido unitariamente, de cima para baixo, a partir de Brasília.

O mal de que Hugo Almeida podia ser acusado entre 1975 e 1979, o do tecnicismo, agora pode ser uma boa ferramenta para expurgar da estrutura do órgão a crosta de outra praga, a do clientelismo político (com sua derivação patogênica ou patológica, a corrupção). Há três meses no cargo, transmitido por um tecnocrata mais envolvido na política e suas derivações, como Maurício Vasconcelos, que o havia indicado, Hugo não tem nada a perder, exceto as associações espúrias – e, no caso dele, inaplicáveis. Pode oferecer à comissão de inquérito, ao Ministério Público e à sociedade todas as informações necessárias para a elucidação das acusações feitas e das suspeitas pendentes, limpando o terreno para nele plantar suas próprias sementes (e, por elas, vir a ser julgado).

Trata-se de uma salutar medida de profilaxia moral. Desde que os militares deixaram de ser os gendarmes da república e os capitães-do-mato da fronteira amazônica, a Sudam tem sido assolada, entre curtos e raros períodos de bonança ou calmaria, por administrações devastadoras, das quais os dois maiores líderes políticos do Pará nas últimas décadas – primeiro Jarbas Passarinho e depois Jader Barbalho – têm sido os fiadores.

Na conta de Passarinho há um débito do peso de Elias Sefer, que provocou no órgão o estrago de uma bomba neutra, aquela que aniquilaria as pessoas preservando as estruturas físicas, como se só estas é que fossem valiosas. O prédio permaneceu incólume (embora vitimado por uma deterioração que hoje lhe confere a marca da decadência), mas a inteligência foi abolida do seu funcionamento. A Sudam era apenas o DAI (Departamento de Administração de Incentivos), uma entidade que se encalacraria como um monstro bifronte de uma mitologia grega ao tucupi, reduzindo os bons e justos aos venais e desonestos.

Na conta da dívida de Jader há a passagem do médico Henry Kayath, afinal uma criatura que se assumiu como precedente ao criador, e do administrador Arthur Tourinho, um nome no qual tantos traços de um poder paralelo se incrustaram. Mas as denúncias de irregularidades foram sendo acumuladas para providências ulteriores jamais adotadas, como se um cinismo operacional tivesse se tornado o modus operandi na superintendência, como se todos já tivessem dançado o baile da ilha fiscal e estivessem na portaria, à espera do troco do pagamento que não fizeram.

O troco está vindo pelas mãos do maior de todos os falsos Catãos da república, que encontrou um bom modo de acertar as diferenças com o odiado inimigo sem que dessa ação resulte qualquer bem para a nação, a não quer que, por fim, ambos se arrastem para o destino comum de que são merecedores. Não sendo ele o que se auto atribui.

Como os dois políticos só têm razão quando acusam, cada uma das acusações (na maioria das vezes tiradas de recortes da imprensa, lançadas ao mercado e descontinuadas na hora do vamos ver) deve ser deslindada pela instância competente do executivo, do legislativo, do MP e do judiciário até suas últimas consequências. Já a via institucional deve seguir seu caminho próprio, embora até o mesmo destino, que não deve ser o das calendas gregas.

Por seus interesses políticos, o senador Antônio Carlos Magalhães colocou em boca própria a litania de muitos anos dos críticos do modelo de desenvolvimento regional, adotado tanto pela Sudam quanto pela Sudene. A pretexto de atrair e induzir os grandes capitais das regiões centrais, dentro e fora do país, para se instalarem na periferia, os subsídios estatais acabam criado um efeito multiplicador do capital na própria origem dele, agravando ao invés de eliminar ou atenuar as desigualdades (inter e intrarregionais).

O II PDA, que Hugo de Almeida ajudou a criar, reconhecia que o desequilíbrio era o efeito natural desse modo de desenvolvimento. Mas prometia adotar mecanismos institucionais (sobretudo através do planejamento) para impedir os aspectos nocivos do modelo, corrigindo-os.

Duas décadas depois, não foi isso o que aconteceu, como o próprio Hugo de Almeida pode verificar. Em seu quinquênio, os vazamentos de recursos oficiais eram menores porque a condição prévia para a liberação dos incentivos fiscais era a contrapartida do capital privado e, na verificação das aplicações, havia o guante dos objetivos categóricos do establishment tecnoburocrata sob cercadura militar.

Agora, as denúncias falam em milhões de reais liberados pela Sudam sem um centavo vindo da parte dos parceiros incentivados e inexistência de qualquer obra física a atestar a aplicação do dinheiro. Ou seja: se alguém se aperfeiçoou foram os piratas, os dilapidadores dos cofres públicos. Efeito perverso do modelo ou nada mais do que sua criatura endemoniada, como num livro de Guimarães Rosa sobre o sertão?

Um velho samba tem resposta categórica para esse tipo de drama: manda a criatura tomar o filho que gerou, por mais monstruoso e disforme que ele se tenha tornado. “Toma que o filho é teu, meu senhor”, diz a letra do samba. O pai, no caso, é a elite. A elite brasileira, dona dos capitais acrescidos de milhões que deveriam ser arrecadados pelo leão tributário, supostamente para benefício indiscriminado de todos. E a elite paraense, principalmente ela, e especialmente seus principais políticos, por terem colocado em cargos tão importantes pessoas tão desqualificadas, exceto para cobrar o seu PF. Não o prato feito do Zé Mané. Mas o “por fora” dos colunáveis. Daqueles que erigem seus palácios de mandarins sob os ossos de uma massa que, fora dos períodos eleitorais, chamam de povaréu.

A hora da Sudam chegou.

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