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Cultura, Memória

Angelim: homem honrado e pobre, 40 anos depois da cabanagem

A contribuição de hoje de Ricardo Condurú à história da cabanagem, que ele divulgado no seu blog, Cabanagem Redescoberta, é uma curiosidade: a colaboração dada por Eduardo Angelim ao naturalista Barbosa Rodrigues em 1872, quando de sua exploração pelo Vale do Amazonas, hospedando-o, inclusive, em seu engenho Madre de Deus. O texto, que descreve ainda uma Belém que não existe mais, foi publicado na edição 123 do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, de 3 a 17 de maio de 1872.

[Tomei a liberdade de grifar alguns trechos da matéria. LFP]

INTERIOR

EXPLORAÇÃO E ESTUDO DO VALE DO AMAZONAS

Nomeado pelo governo imperial, em 23 de dezembro do ano próximo passado, a fim de fazer explorações botânicas no Vale do Amazonas, completar a minha Iconografia das Orquídeas do Brasil e de escrever a das palmeiras, preparava-me para partir, quando fui convidado pela redação desta folha para escrever alguns artigos, em que apresentasse, não só o que me impressionasse no meu itinerário, como os usos e costumes dos lugares que percorresse. Baldo da maior parte dos requisitos indispensáveis, mas querendo corresponder à honrosa confiança que em mim foi depositada, nada mais farei do que apresentar, em um estilo chão, sem atavios poéticos ou recheio de erudição, o meu itinerário, no qual, irei descrevendo tudo o que vir, tudo que me impressionar, tudo quanto me pareça de utilidade e interesse. Não me apresento como autoridade; falta-me para isto muito, sobrando-me a boa vontade, que fará que, com indulgência, sejam recebidos os meus humildes escritos.

Espinhosa e difícil tarefa me pesa sobre os ombros, mas nem os trabalhos, as fadigas e as provações farão, um só momento, com que deixe de empregar toda a minha coragem, a fim de bem desempenhá-la, não desanimando nunca.

Depois de feitos os preparativos necessários para uma longa excursão, e de preparar o material que sempre acompanha o botânico viajante ou naturalista, saí da Corte no dia 16 de janeiro do corrente ano, pelas 11 horas da manhã, a bordo do vapor Pará, que fazia então a sua primeira viagem. É um excelente vapor, onde, a par do luxo, acha-se a comodidade. É de lastimar, porém, que tenha marcha lenta, e, sobretudo, que tenha comandante e tripulação estrangeira, quando a bandeira é nacional.

Horas depois de receber a visita da polícia, vi com prazer irem-se sumindo na orla do horizonte as pitorescas montanhas que circulam a baia do Rio de Janeiro, e entrava em pleno oceano, que calmo e de um azul de safira, molemente ondulava. Pelas 6 horas da tarde tinha em vista uma massa negra de rochedos, de brancas penedias erriçadas, crespa de hirtos sertões… [Descrição da sua passagem pelo Nordeste]

Saindo do Maranhão a 30, só no dia 31, que foi todo de chuvas e grande cerração, avistou-se o farol de Salinas às 7 e meia da noite.

Desde o amanhecer deste dia notei mudança na cor do mar, cujas águas já se achavam misturadas com as do Amazonas.

Raiou o sol do dia 1º de fevereiro no rio Guajurá (sic). Aí já a natureza resplandece; já as vegetações das costas de Marajó e de várias ilhas verdejantes patenteiam toda a opulência da vegetação daquelas paragens.

Com águas serenas e bela viração, aprovamos para Belém, que do fundo de sua enseada nos mostrara as torres da catedral como que surgindo dentre as águas.

À medida que nos aproximávamos, erguia-se lentamente a cidade na linha do horizonte. O panorama desenrolava-se belo, favorecido por uma risonha manhã. Enquanto caminhávamos a terra surgia como por encanto. Entramos afinal no porto, onde muitos vapores e outras embarcações se achavam encontrados; por entre elas, cruzavam, em todas as direções, inúmeros escaleres e canoas próprias do país.

Vista do rio, é majestosa a cidade.

Apenas o vapor fundeou, mais de vinte escaleres vieram rodeá-lo, uns conduzindo pessoas que desejavam visitá-lo, outros para receberem passageiros e cargas.

Uma hora depois desembarquei na ponte da guardamoria, e dirigi-me para o hotel do comércio, situado na rua da Indústria, mantido pelos franceses. A bagagem foi conduzida em duas carroças pequenas, das que aqui se usam, e que são puxadas por cavalos bastante gordos, apesar de alimentados com grama e arroz, em vez de milho, e tão mansos, que são guiados com um simples cabresto de corda.

Depois de instalado no hotel, encaminhei-me ao palácio do presidente da província, grande edifício, bem construído, mas muito arruinado, onde funcionam a tesouraria e a secretaria. Está edificado num vasto largo, rodeado de pequenas mangueiras, que dá frente para a baia [antes de Antônio Lemos]. Depois de uma conferência com S. Exa., dirigi-me à casa do Sr. comendador M. A. Pimenta Bueno, para quem trazia carta de recomendação.

Mandam o dever e a verdade dizer que encontrei no Sr. P. Bueno todo o cavalheirismo e vontade de servir.

A cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará tem sua posição topográfica a 1 grau e 28’ de latitude sul. Está assentada na baía do Guajará, margem oriental do rio Tocantins, na parte setentrional da embocadura do rio Guajará e em frente à ilha das Onças. A baía do Guajará é formada pela confluência dos rios Guamá e Acará, o primeiro já em confluência com o Capim, a 16 léguas da cidade, e o segundo tendo já recebido as águas do Moju, a 6 léguas de distância da mesma cidade.

Divide-se esta, pelo largo do palácio, em duas, a da Sé e a da Campina. A da Sé, onde está a catedral, tem ruas tortuosas e mal calçadas, e é propriamente lugar para residências, enquanto a da Campina, onde está o comércio, apresenta ruas bem alinhadas, porém, mal calçadas, bons prédios e algumas igrejas notáveis.

Nas duas principais ruas (a dos Mercadores e a da Praia) é onde se encontram grandes armazéns e boas lojas, algumas das quais até com luxo. O comércio é grande e ativo, mas está todo nas mãos de estrangeiros [apesar da cabanagem, 40 anos antes]. Reina durante o dia muito movimento de povo e de veículos de condução. Os carros são uniformes nos feitios e pintura, são caleças grandes, pesadas e demasiado largas para as ruas que percorrem. Têm igrejas importantes, como: a catedral de Santa Maria de Belém, a de Nossa Senhora do Monte do Carmo, no bairro da Sé, e as de Nossa Senhora das Mercês, Sant’Anna, e Santíssima Trindade, na da Campina.

A catedral, se bem que não seja rica, é espaçosa, elegante e bem construída. E tem um lindo frontispício. Nossa Senhora das Mercês é uma igreja também espaçosa, mas não só não tem ricos ornatos, como está presentemente quase em abandono, como bem atestam o pó vermelho que lhe cobre as paredes, e a falta de ornatos nos altares. A da Santíssima Trindade é notável pela sua arquitetura externa.

A população é composta de brancos, mamelucos (cruzamento das raças branca e índia), mulatos, cafuzos (cruzamento da índia com a negra); curibocas (cruzamento da cafuza com índio); xibaros (de cafuzo, negro e crioulo). Dá-se este último nome somente aos filhos da pura raça negra, nascidos no país, e o do tapuio ou caboclos aos índios civilizados. Esta mistura de cores, todas mais ou menos com traços indígenas, dá um aspecto singular às reuniões.

Um dos passeios pela cidade que mais me impressionou foi o do mercado pela manhã. Aí é que se encontra no pequeno espaço de umas 30 braças quadradas, pouco mais ou menos, diversos tipos bem característicos. Vê-se ali a bela morena mameluca, sempre com suas flores de jasmim ou angélicas nos cabelos negros, com seu pente-travessa aromatizado pela baunilha, cumaru ou pipirioca (sic), com suas belas espáduas  e seu colo nu ornados de vários fios de ouro ou missangas, e com seu paneiro (cestos pequenos e fundos de um tecido largo e aberto) à cabeça fazendo compras; vê-se ali a mulata que vende tucupi e tacacá, de saia e camisa, com flores naturais nos cabelos, douradas a pão de duro,  assentada diante de duas grandes panelas, de onde tira as cuias a repugnante bebida tão apreciada pelos naturais, e que mais tarde descreverei. Ali vende a tapuia singelamente vestida o seu açaí e bacaba em fruta, ou já preparado; aí vem o caboclo nu da cintura pra cima trazer o seu peixe; finalmente reúnem-se ali todos os tipos da província, os quais mais adiante descreverei.

Os naturais são vivos, inteligentes, porém, indolentes; a parte, porém, civilizada, é laboriosa e ilustrada. Os benefícios da civilização não chegaram ainda à camada inferior da sociedade; não obstante, seus costumes são puros e inocentes.

É derramada a luz pelos seguintes estabelecimentos de instrução: pelo grande e pequeno seminário, por oito escolas públicas para cada sexo e várias outras particulares. O clero é aqui morigerado e instruído, mas contrista ver numa terra como esta, essencialmente brasileira, como é o jesuitismo derramado pelo clero francês, que sem ao menos nacionalizar-se, vai ocupando cargos públicos, e espalhando doutrinas reprovadas e perseguidas desde o tempo do Marquês de Pombal.

 Publicam-se na capital diversas folhas diárias de ambos os partidos, nas quais aparecem às vezes artigos virulentos, em que caracteres distintos são atassalhados como num pelourinho.

O clima é quente e muito úmido, principalmente agora que o inverno se tem mostrado rigoroso. As chuvas são abundantes e diárias: com o sol fora, de repente, sem transição alguma, cai em torrentes a chuva. Ressente-se a umidade do ar por toda a parte, nas casas, nos instrumentos, nos móveis, na roupa, em tudo.

Apesar de estarmos no inverno, o calor é às vezes insuportável: à sombra nunca marca o termômetro menos de 78º Farhn. ou 28º Cent. Esta umidade constante produz algumas moléstias do fígado, que dão uma cor macilenta aos naturais.

A natureza aqui é rica e alegre, oferece todos os recursos, e só pede braços, homens de força de vontade, que venham despertar os que aqui nascem da indolência em que vivem.

Sem o menor trabalho a natureza alimenta, veste e dá abrigo àqueles que a ela recorrem. Abundam os peixes, as frutas, as caças e a vegetação. As terras são ubérrimas; entretanto, não há, por assim dizer, lavoura, não há indústria, senão a indígena, que parece diminuir cada vez mais; por isso tudo aqui, inclusive os gêneros do país custam menos quando é importado. O comércio escraviza e afugenta o índio.

Dois dias depois da minha chegada mudei-me do hotel, onde temporariamente estava, para uma pequena Rocinha (1 – chácara), distante da cidade cerca de meia légua, à rua da Cruz das Almas, nº 8. É célebre esta casa, por ter sido outrora a residência de João Miguel de Souza Leal Aranha, o rebelde que em 1835, traçou o plano da revolução nesta província [atual Arcipreste Manoel Teodoro]. Nesta rocinha pretendia eu estabelecer o centro das minhas excursões, por estar fora do bulício da cidade e gozar mais sossego e liberdade; nesse propósito comecei a fazer algumas coleções botânicas, que dias depois ficaram completamente estragadas por causa da umidade. Aí tive ocasião de descrever uma orquídea encontrada sobre uma cuieira (crescentia cujete), do gênero Lockartia, e que julgo ser de uma espécie nova. Encontrei em pés de laranjeiras grande quantidade de angraecum janeirense ap. nob. (já por mim descrito) em lugares cultivados, e também Burlingtonia atrorosea (Rodriguezia secunda H. B. K. th.) epidendrum atenoptalum e oncidium iridifolim H. B. K. th., que eu ainda não havia descrito, e que ostentava sobre um velho cafezeiro sua plena florescência.

O gênero Ornylocephalus é bem representado nos arredores por uma espécie, que não classifiquei, por não estar em flor, mas que tem grande afinidade pelo porte com o Omyrticola, do qual se distingue pela falta de pubescência no escapo, que alguns ainda conservavam verde.

A vegetação das imediações é insignificante, porque todos os terrenos estão cultivados. Não podendo continuar a residir ali, pela constante umidade, mudei-me dias depois para uma outra casa, na estrada de S. João, onde o terreno é arenoso e não alagadiço.

A alguns passos da casa começa uma floresta, ainda nova, pouco elevada, e fechada por inúmeras plantas trepadeiras. Nos lados da estrada nascem algumas piperaceas e solaneas. Poucos resultados tenho colhido de algumas excursões feitas, por não ser este o tempo da florescência.

Colecionei apenas uma Malpighiacea do gênero Byrsonima (na qual, procedendo a uma análise, encontrei abundância de tanino nas cascas e pouco nas folhas), uma myrtacea do gênero gustavia, vulgarmente chamado Geniparana, com cuja madeira, por ser muito flexível, se fazem os arcos que sustentam a tolda das igarités; uma cassia de flores amarelas, uma lacsonia, uma lecythis, e uma tabernaemontana. (2 – Lindos pés da pequena palmeira mumbaca (astro caryum mumbaca Mart.) ali encontrei, que descrevi e desenhei. Entretanto não o pude fazer com um pé de bactris acanthocarpa; porque, apesar de estar com frutos, era defeituoso e pouco desenvolvido).

Impróprio é tempo agora para tais excursões, porque, além de chover constantemente, sendo por isso mister andar muitas vezes pelos campos ou matas com água acima dos tornozelos, como me tem acontecido, não se encontram quase flores. A parte entomológica é pobre, talvez por estarmos no inverno; raros são os insetos que tenho encontrado, e esses mesmos pobremente representados pelos gêneros morpho, papilio, hilicomii. Abundam apenas as hiliconias thelxiopes.

Do gênero copris, encontrei uma variedade copris lunatus, muito maior e mais bela do que as conhecidas por mim, as quais têm o tórax e a ponta do clythros literalmente dourada, sendo estes de um negro azulado. Encontrei também alguns indivíduos da cuprestis gigantis, vulgarmente chamada aqui mãe do sol.

Dia 17 [fevereiro] – depois de feito os preparativos necessários para uma excursão de alguns dias, tomando uma igarité, que para esse fim foi obsequiosamente posta à minha disposição pelo Sr. Eduardo Francisco Nogueira Angelim, deixei a capital.

A igarité, pela sua construção original, merece ser descrita. É uma espécie de canoa de voga, porém, com a popa e proa muito elevadas e quadradas, e que servem para afrontar a força das correntezas. Tem a popa uma coberta ou tolda que abrange quase dois terços do comprimento total, e que é formado por arcos de geniparana (uma myrtacea do gênero gustavia muito flexível, como já disse) que são cobertos por palmas das palmeiras ubuçu ou ubim (Manicaria saccifera e geonoma paniculigera), que são empregadas por causa de sua duração. Sobre estas palmas estendem uma esteira de ripas delgadas de paxiúba, açaí, caraná ou marajá. A estas ripas dão os naturais o nome de Juçara que também é dado no Maranhão à palmeira açaí (Euterpe edulis). Por baixo da coberta há um assoalho (jirau) onde vão os passageiros sentados ou deitados, conforme sua altura; os índios trazem suspensas suas redes sob esta coberta e nelas conduzem sempre suas famílias.

Nos arcos, que sustentam essa mesma coberta, prendem uns laços de cordas chamados tipoias, que servem como de depósito para os instrumentos de caça e de pesca. O interior é guarnecido de bancos.

Há grandes e pequenas igarités. As primeiras têm mastros e velas (3 – Tintas de vermelho, que com o tempo tornam-se pretas, cor produzida pela infusão das folhas do huruchi [muruci] (um malpighiaceae do gênero Byrsonima), e muitas vezes são conduzidas por uma só pessoa, enquanto as segundas são tripuladas por três homens, dois remadores e um piloto, que denominam jacumã (nome aplicado, quer aos remos que serve de leme nestas embarcações, que à pessoa que o governa). Quando as primeiras são conduzidas por um só homem, navegam com ventos ou correntes, e nesse caso tem de esperar em qualquer igarapé, quando esse elemento lhe falte.

Os remos das pequenas são umas pás circulares, com cabos e punhos, à imitação das pás de jardim, tendo, pouco mais ou menos, o tamanho destas. Os das grandes têm a mesma forma, porém sem punhos e amarrados com cipós e varas do comprimento de um remo vulgar. São guiadas aquelas, não por um leme verdadeiro, mas sim por um remo de punho, que o piloto sustenta e maneja na popa.

Saí da cidade pelas 3 horas da tarde, e se bem que a atmosfera se mostrasse pesada, não apresentava, contudo, indícios de chuva.

Logo que comecei a atravessar o canal do Guajará, e a afastar-me da cidade, um belo panorama desenrolou-se à minha vista.

A igarité com suas velas negro-avermelhadas deslizava-se pela superfície das águas num doce ondear, correndo como um novo guará em busca da ponta da ilha das onças, que, coberta de luxuosa vegetação, se apresentava pela frente, enquanto que ao longe, entre ilhas de verdura, aparecia a foz do rio Guamá e as florestas do Acará e Moju. Era um belo espetáculo para mim essa natureza inteiramente nova. A força de vegetação, se não excedia em majestade à flora de Minas e Rio de Janeiro, tinha, pelo menos, mais variedade.

Às 4 horas, ao som da buzina do homem do leme, que por esse meio chamava o vento, dobramos a ponta da ilha, que conta três léguas de extensão e meia de largura, e começamos a costeá-la, passando por baixo das galhadas da vegetação, a qual por vezes chegava até à flor d’água.

De repente começou o vento como por encanto; as águas, até então agitadas, espalharam-se de chofre e tomaram um aspecto tristonho; as velas desenfurnaram-se e os remos começaram compassados a vencer pouco a pouco a força da corrente.

Tínhamos entrado na chamada baia do Carnapijó.

Mansa e vagarosamente deslizava a igarité pela encosta da ilha, pelo que pude observar comodamente a vegetação que aí predomina. Bosques de assahy [açaí] (euterpe edulis) cobrem várias extensões, aparecendo aqui, ali, algum urucurizeiro (attalea excelsa) e algumas leguminosas, debruçadas sobre as águas, destacando-se entre elas uma do gênero Inga, de altura quase colossal, cujos frutos, de tamanho extraordinário, apresentam formas não próprias das do sul do império.

Algumas allamandas, umas tabernaemoniana e muitas convolvulaceae e passifloraceas notei ali, e cheguei mesmo a colher uma linda lacsonia de flores escarlates. As árvores que predominam na encosta são as palmeiras representadas pelas espécies mencionadas e por um ou outro pé de mauritia flexuosa (Muruty [buriti]) ou astrocarim vulgare (tucumã).

O aspecto da parte da ilha que percorri é lindo, e as diversas cenas que animam a paisagem tornam esse lugar um dos mais pitorescos. Várias igarités desciam ao largo, levadas pela correnteza, outras escondidas nos igarapés esperavam o vento com a tripulação e família em terra, quase ocultas pela vegetação.

Às 6 horas abandonei a encosta da ilha, atravessei o Carnapijó, demandei a margem oposta, e entrando por um igarapé, fui ao engenho S. Mateus, onde fiz provisão de aguardente, que me era necessário para conservação de frutos, peixes etc., saindo daí quando já era noite. Pouco depois, estando ainda no igarapé, a chuva caiu torrencial, acompanhada de algum vento, que me era mais ou menos favorável.

Coberta a terra pelas travas da noite, nada pude observar, mas, pelo que podia ver de dentro da tolda, quando um ou outro relâmpago iluminava o horizonte, julgo ser uniforme a natureza do lugar.

Pelas 11 horas cheguei no engenho Madre de Deus.

Dia 18 – ao raiar do dia fui despertado pelos chilros cantos de inúmeros pássaros que não me pareceram desconhecidos. Abri a janela do meu aposento, que dá para a mata, e fiquei extasiado. Inúmeros buritizeiros (mauritia flexuosa), confundidos com tucumanzeiros, bacabeiras (oenocarpus), e outras vegetações, fortes dos trópicos, se me apresentam à vista; saio para a varanda que corre toda à frente da casa e vejo o poder de Deus, representado em uma sumaumeira (Eriodendrum sumauma), cujo tronco dez homens não abraçam, cujo cimo quase atinge uma elevação de 80 pés, cobrindo uma circunferência onde 2000 homens estariam à vontade.

Tinha ela os galhos inferiores cobertos de centenares de ninhos, onde milhares de xexéus ou japins (cacicus ictenoraius), como aqui são denominados, esvoaçavam, trabalhando na construção dos ditos ninhos, cantando, chilrando, como que para saudar a alvorada.

O engenho Madre de Deus, propriedade do Sr. Eduardo Francisco Nogueira Angelim, ocupa uma posição magnífica em todos os sentidos. Acha-se assentado em terra firme, na margem do Carnapijó, que banha suas terras, correndo pela frente da casa. Está em decadência, em vista do estado de pobreza em que se acha hoje o ex-presidente da revolução de 1835.

Homem honrado, chão, cavalheiro de trato ameno, sabe cativar aos estrangeiros (como aqui se chama aos filhos de outras províncias), aos quais prodigaliza todos os favores.

Uma surpresa estava-me preparada por ele; quando saí à varanda, um enorme quelônio (Chelys fimbriata) estava na outra ponta da varanda, ainda viva. É um animal feio, tem a semelhança da tartaruga, mas distingue-se por um longo pescoço, quatro vezes mais grosso que os pés, e com a cabeça chata com alguma semelhança à da cobra, com largas goelas, olhos excessivamente pequenos, tendo um prolongamento membranoso e tubular na parte anterior e superior da cabeça, que são as fossas nasais. Pela primeira vez vi semelhante animal, que aí é muito raro.

Quando o preparei encontrei 21 ovos completamente desenvolvidos e 24 ainda em gemas.

A carne, dizem, ser saborosa, e os ovos excelentes; nada posso, porém, dizer a tal respeito, porque repugnou-me comê-los.

Em consequência da chuva, que tem sido incessante, não saí de casa, reservando o resto do dia para tomar algumas notas.

Dia 19 – Saindo pelas 7 horas da manhã, dirigi-me para uma bela praia que dista da fazenda meia légua, tendo para isto que atravessar uma nova e baixa floresta, quase toda alagada pelas grandes chuvas que tem havido, e onde tive ocasião de examinar uma bela bacabeira (oenocarpus bacaba). É uma das palmeiras mais úteis para os habitantes, os quais fazem dela uso diário como alimento. A classe menos favorecida pela fortuna quase que se não alimenta senão de babaca e de açaí. É uma espécie de limonada (sic) feita com os frutos, quando maduros. Machucam-se estes com as mãos em uma vasilha de barro vidrada até perderem o epicarpo e mesocarpo; dissolve-se depois tudo n’água e passa-se em uma urupema (1 – peneira), o que fica é uma mucilagem quase cor de cinza, que se bebe simples ou com farinha d’água de tapioca, ou mesmo com açúcar.

É uma bebida geralmente insípida, com gosto de ervas; mas, adicionando-se-lhe açúcar, torna-se de um gosto especial, porém mais agradável.

O açaí é igual bebida, cuja cor é de um belo roxo, resultado de um processo igual, feito sobre frutos da palmeira açaí.

Euterpe edulis é uma das causas da indolência entre o povo. Encontram-se estas palmeiras em abundância em todas as matas, mesmo nas rocinhas (chácaras) da cidade, e pela facilidade que há em apanhar os frutos, e o alto preço que atinge no mercado, faz com que milhares de indivíduos não se ocupem senão de apanhá-las.

Na sua montaria (canoa) própria, alugada, ou emprestada, sobe o indivíduo por qualquer rio, colhe os frutos onde os encontra, demora-se um ou dois dias, enche alguns paneiros de um ou de outro fruto, volta ao mercado, vende-os por 2$ (bacaba) ou 6$ ou 7$000 (açaí) e não trabalha mais enquanto dura o produto da venda.

Explorando a mata, de que acima falei, quase a beira-mar, encontrei um grande pé de açacu (Hura brasilienses) [Hura crepitans] com frutos. É uma euforbiácea tão venenosa, que duas medidas do seu leite derramado em vários lugares, de um igarapé, basta para matar todos os peixes de três marés, conforme me informaram pessoas fidedignas.

O leite é cáustico, e o seu poder tóxico é tão temido, que ninguém se anima a derrubar a árvore; e quando é necessário fazê-lo, praticam com cautela uma incisão profunda na parte cortical, esperam dois ou três dias, e, quando já não corre leite algum, é que lhe derrubam, ou fazem-lhe fogo em roda do tronco (2 – Pessoa de muito crédito afiançou-me que, limpando os dentes uma certa ocasião com o carvão do açacu imediatamente sentiu como que a boca queimada, racharam-se-lhe os beiços, e ficou com os dentes dormentes, a ponto de não poder comer por uma semana).

É uma bela árvore, que cresce nas margens dos igarapés e dos rios; o chão cobre-se de folhas e de frutos, que aí apodrecem, e são levadas pelas grandes marés, e isso a meu ver, deve mais ou menos contribuir para as febres que reinam em certos lugares, cujos moradores servem-se das águas para banhos e para beber.

Mais tarde terei de estudar com atenção este fato.

A vegetação da parte que percorri, se bem que nova, é variadíssima, e entre a grande quantidade de palmeiras que vi, encontrei algumas seringueiras (Siphonia elastica) [Nome aceito: Hevea guianensis], o anani (Simphonia globulifera), o jutaí (hymenaea courbaril), cuja rezina é empregada em resinas, e para vidrar panelas, e de cuja casca fazem os índios as suas ubás. Pouco colhi nesse lugar, porque, além de não ser tempo das flores, e algumas que há estão estragadas pelas águas, conservando-se molhadas as plantas todos os dias. A parte entomológica aqui é paupérrima.

Na praia ou mangal só encontrei gigantescos pés de mangue branco e vermelho, ambos do gênero Rhizophora, que com suas numerosas raízes adventícias formavam grandes arcarias, por baixo da qual se passava. A aninga (caladium arborecens) aí formava uma mata com mais de três braças de altura, toda cheia de frutos. Principiando a chover copiosamente, vi-me obrigado a voltar para casa, onde passei a tarde preparando algumas plantas.

Dia 20 – voltando ao mesmo lugar encontrei alguns pés de aturiás (dramanocarpus lunatus) [drepanocarpus lunatus], árvore baixa, espinhosa, pertencente à família das leguminosas, cujas raízes estendem-se a grande distância, vivendo quase sempre descobertas (por causa da ação das águas), e que são empregadas em infusão contra a tosse. A madeira é excessivamente leve, com os utrículos dos tecidos muito compactos. Emprega-as nos mesmos misteres da cortiça.

Aí também encontrei a andiroba (carapa guianensis), de cujas sementes extraem-se um belo óleo, que para alguns é melhor do que o azeite doce. O processo da extração é ainda primitivo. É o seguinte: colhidas as sementes, são fervidas até amolecer e depois espalhadas sobre a terra em lugar sombrio, onde se devem conservar por espaço de um mês: passado esse tempo, tiram-se os epispermos, amassam-se as amêndoas, que depois são reunidas em uma vasilha onde são abafadas com folhas de aninga. Dois dias depois põe-se essa mesma sobre uma tábua côncava, um pouco mais inclinada, e que tem na parte mais baixa uma espécie de canal, e espremesse a mão essa massa, e então o óleo corre puro e límpido pelo canal, e vai depositar-se em um vaso que de antemão se põe no lugar por onde tem de correr o óleo.

Logo que deixa de correr o óleo, ajunta-se a mesma massa, e passadas algumas horas repete-se a operação, a qual pode ser feita quatro a cinco vezes por dia. Quando a massa não dá mais óleo algum, extraem-no pelo mesmo processo ao sol, ou levam a massa a um tacho onde é fervida em água.

O óleo assim extraído se serve para máquinas ou para uso grosseiro.

(…)

Dia 27 – depois de 10 dias de excursões pelas matas da baía do Carnapijó, tomei uma igarité e dirigi-me para a capital, seguindo por um furo denominado Piramanha, pelo interior das ilhas das onças a entrada do canal tem uma largura pouco mais ou menos de 200 braças, e depois vai gradualmente estreitando. Na dita entrada há uma choupana toda construída de buriti e paxiúba. As margens são cobertas por um extenso aningal.

Estas choupanas, abrigo de pessoas menos abastadas dessas paragens, são originais e bonitas quando bem construídas. (…)

[O naturalista Barbosa Rodrigues segue seu relato sobre o vale do rio Amazonas, não mais mencionando Eduardo Angelim, no que encerramos aqui sua narrativa – Nota do Blog Cabanagem Redescoberta]

Discussão

2 comentários sobre “Angelim: homem honrado e pobre, 40 anos depois da cabanagem

  1. Invasão em Castanhal:

    Neste domingo 16 de junho de 2024, a cidade de Castanhal foi invadida por dezenas de milhares de concurseiros oriundos da capital e de outros municípios próximos – jovens profissionais a procura de uma oportunidade de emprego concursado e estável, com remuneração mais atrativa, coisa cada vez mais rara em Belém do Pará, principalmente depois que Simão Jatene e Helder Barbalho transformaram a saúde pública em um paraíso de organizações sociais “sfl” tão milionárias quanto suspeitas.

    E o assunto mais comentado entre estes concurseiros certamente foi a próxima invasão, a ser feita no município de Bragança, onde a prefeitura local também organizará concurso público, totalizando em apenas dois eventos mais vagas do que o total oferecido na saúde pública estadual nos últimos 14 anos. Lamentavelmente.

    Digo lamentavelmente, porque eu e você não podemos colocar nossos filhos em altos cargos públicos como fez Jatene e como faz Helder; resta-nos agradecer aos prefeitos de Castanhal e Bragança por estas oportunidades, que se diga de passagem, disputadíssimas.

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    Publicado por J.Jorge | 17 de junho de 2024, 12:19
  2. Prof. Lucio e Ricardo Condurú, obrigada pelo compartilhamento desta incrível e detalhada descrição! Realmente incrível!

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    Publicado por Simone | 23 de junho de 2024, 11:18

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