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Cultura, Polícia, Política

Arigós, Aconteceu na Amazônia

De Paulo Faria

Toda segunda-feira está sendo publicado aqui no blog um capítulo do meu romance “Arigós, Aconteceu na Amazônia”, a partir do livro “Tragédia na Amazônia, prelúdio do AI 5” do Lúcio Flávio Pinto.

4ª estação
Haroldo chega de táxi ao palácio dos governadores. Prédio branco e pomposo, com linhas geométricas retangulares e harmoniosas, tem a forma de um castelo, construído pelo genial Landi, em 1772, e que revolucionou Belém com a criação de vários novos prédios públicos da coroa e da igreja, bem antes da belle époque da borracha.

O enorme palácio abre o primeiro bairro de Belém, Cidade Velha, em frente a feira do Ver-o-Peso. Em priscas eras, o rio Pará já chegou até as escadarias da calçada do palácio, antes do aterro e da criação da bela praça do relógio, onde agora dezenas de urubus ciscavam restos de peixe espalhando um forte pitiú.

Haroldo bate continência para a guarda na entrada e sobe correndo as escadas de mármore.

A secretária, D. Rosely, o leva direto para a sala do governador. Bate com cuidado na porta e a abre. “Com licença, senhor Governador, o Deputado Federal Haroldo Veloso está aqui.”

Alacid está levemente transtornado ao telefone e faz um gesto com o dedo indicativo para que entre.

A secretária faz um gesto com a mão: “Pode entrar, deputado.” E sai, fechando a porta com toda parcimônia minimalista.

“Por favor, sente-se. Já estou terminando. Preciso agora falar com o Deputado Veloso que acabou de chegar. Segure as pontas aí e faça o que eu estou ordenando. Boa tarde!”

Veloso senta numa das cadeiras na frente da mesa do governador, no mesmo instante em que Alacid desliga o telefone, fazendo um forte barulho seco. Haroldo enrijece os ombros. O governador pega o cigarro aceso no cinzeiro e dá um longo trago. E numa outra respiração mais calma, como se nada tivesse acontecido, fala soltando junto a fumaça: “Obrigado por atender ao meu pedido, Veloso. Pedi que viesse aqui no palácio… Preciso que intervenha num conflito posto.”

Em sua frondosa mesa de jacarandá escura, apaga o cigarro no grande cinzeiro redondo de cristal, à sua esquerda. No centro, duas canetas de cor de chumbo numa pedra preta de mármore, onde tem um pequeno abajur cinza de leitura e um caderno com capa cor de carne, do lado direito. Do mesmo lado um telefone preto e, na frente, uma pequena estátua de ferro de um soldado em marcha com uma arma no ombro, virado para a porta da grande sala na esquina, em direção da feira do Ver-o-Peso.

As duas paredes que dão para a esquina, como a ponta de uma lança, têm grandes janelas com sacadas, num total de quatro. Numa dessas paredes, a que dá para a rua da frente do palácio, está a sua mesa entre duas janelas, de frente para a porta da sala. Atrás, na parede, um quadro com a foto do presidente da república, o marechal Arthur da Costa e Silva, o terrível. À sua direita, no final da parede, tem uma porta menor que dá para a outra sala de frente.

As janelas brancas e as cortinas verdes estão fechadas. Somente um enorme lustre de teto, proporcional à sala, pendurado dentro de um camafeu de gesso pintado de dourado, ilumina a sala. Em cada canto um potente e silencioso ventilador de pé.

A sua cadeira e as duas outras, na sua frente, são grandes e de couro. No meio da sala, um jogo de confortáveis sofás, com mesa de centro. Em cima, a bíblia e um cinzeiro de bronze em formato de cruz. O papel de parede em detalhes arabescos em vermelho, verde e dourado, dão ao ambiente um tom imperial.

Haroldo está sentado numa das duas cadeiras em frente à mesa, na que está à esquerda do governador e à sua direita.

“O conflito é a cassação do prefeito de Santarém?”

“Exato, Veloso. Já deves saber dos fatos.”

“Esse problema se estende por quase um ano, desde o afastamento do Elias. Somos de partidos opostos, mas, praticamente, da mesma cidade.”

O governador abre o caderno, pega a caneta e rabisca algo. Deixa a caneta sobre as folhas e olha profundamente nos olhos de seu interlocutor.

“Por isso te chamei. Preciso que o nobre deputado seja mediador para apaziguar os ânimos da população de Santarém, que é contra a cassação do prefeito.”

Desde que se afastou do partido, é a primeira vez que o governador recebe Haroldo.

“É uma situação difícil.”

“Tenho certeza que sabe disso, Veloso.”

“Elias é o maior líder político da história de Santarém, principalmente das colônias, que nunca tiveram história.”

“Eu ainda não vou usar da violência, nem de armas. Acredito na justiça, que não há chance dele retomar a prefeitura.”

O governador oferece um cigarro da sua cigarreira de prata e o isqueiro zipo. Haroldo agradece e retira a sua carteira de cigarro do bolso da camisa, e o seu isqueiro zipo do bolso da calça. Os dois acendem os cigarros ao mesmo tempo. O governador não tira os olhos de Haroldo, que fecha os seus para um longo trago. Abre os olhos nos olhos pequenos e brilhantes do governador, fixos nos seus. Bate a cinza no cinzeiro e deixa o cigarro aceso lá.

“Conte comigo. Vou me programar para ir mais de uma vez a Santarém para reunir na câmara. Tentarei dialogar com a oposição para conter os ânimos. E vou conversar, principalmente, com os moradores das colônias circunvizinhas.”

“Isso. Mantenha todos em calma, que aguardem a decisão da justiça, que deve ser acatada por todos.”

“Que dia é hoje?”

“13 de agosto.”

“Agosto, mês do desgosto. Li essa frase em algum lugar. Sempre é um mês difícil, não?”

“És supersticioso, deputado?”

“Precavido e respeitoso. Vamos ver se resolvemos esse imbróglio. Logo é setembro. Um bom mês para descansar. Mês da primavera. A natureza é sábia, governador.

Irei hoje mesmo reunir com alguns deputados aqui em Belém. E vou amanhã para Santarém.

Preciso ir agora, para me organizar. Fique tranquilo, vamos encontrar uma solução. Boa tarde, governador.”

“Boa tarde, deputado.” Apaga com requintes de delicadeza o cigarro no cinzeiro de cristal.

No dia 19 de setembro, quando Haroldo chega para embarcar no avião para Santarém, todos os passageiros já tinham embarcados, e ele foi o último, quase perdendo o voo.

Ao entrar no avião, viu que ali tinha um grande contingente da PM do estado.

Sentou na poltrona do corredor ao lado de dois soldados e acendeu o cigarro. O moço lhe pediu um. O que ele cedeu prontamente.

“O que vão fazer em Santarém?”

“Vamos ocupar a prefeitura, impedir o ato programado ali amanhã.”

“Ordens do govenador?”

“Essa parte o senhor deve saber mais que nós.”

“Quantos homens têm aqui?”

“Cinquenta e mais 100 já embarcaram mais cedo no avião da FAB. Já deve estar em terra.”

“Então, a festa vai ser grande.”

“Vai ter festa?”

“Essa parte tu deves saber melhor que eu. Qual a cor dos seus olhos?”

“Verde.”

“Bonitos. Quem está no comando dessa operação?”

“O delegado Lauro Viana. Ele está lá no fundo.”

“Pode ficar com o maço de cigarros, eu tenho outro.”

“Deputado Veloso, eu votei no senhor.”

“Espero não desapontá-lo.”

“Nem eu.”

Haroldo olha um instante a mais nos olhos do soldado e levanta da poltrona, vai sentar em outra nos fundos, ao lado do Delegado.

“Com licença, posso sentar ao seu lado?”

“Claro, deputado.”

“Obrigado.”

O tenente Viana costuma usar trajes civis em operações especiais, como se fosse um disfarce.

“Deputado Veloso, sabemos que o senhor está ao lado do prefeito de forma irredutível no cumprimento da ordem do governador, isso pode causar uma chacina.”

“Vocês têm ordem de atirar na população?”

“Posso atirar até na sua pessoa se estiver ao lado do prefeito na passeata.”

“Que estará ao lado do povo.”

“Somos nós que apitamos a banda.”

“Eu estarei à frente da passeata ao lado do povo, um alvo certo pra tua carnificina. Bom voo.”

No voo da FAB, que pousou Santarém, no final da manhã, no mesmo dia 19, além dos 100 homens, estava o governador. Ele foi nesse voo para não chamar atenção de sua estada na cidade. Ele passará a noite e voltará na manhã seguinte.

O prefeito chegou um dia antes de todos, no dia 18. Foi direto para a câmara com o vice, um deputado estadual e os vereadores do seu partido. Foram entregar ao presidente da câmara o mandado judicial para reintegração de posse.

O mandado foi entregue ao vereador João Marques de Meneses, 3º secretário, que estava no exercício da presidência da câmara. O documento foi lido em sessão.

Marques convocou o prefeito em exercício Elinaldo Barbosa dos Santos e oficiou o recebimento da carta, assumindo o cargo com o afastamento do titular, por ser o presidente da câmara. Elinaldo pediu que adiasse por 24 horas a reintegração de posse, para o dia 20, às 19h, “O governador vai chegar amanhã, e eu o recepcionarei na cidade. Ele voltará no dia 20 pela manhã e à noite cumprimos o mandado judicial.”

Elias concordou que fosse dia 20. Haroldo chegará no 19 e poderão articular melhor para que a reintegração de posse tenha ao menos dez vezes mais que o contingente de soldados.

No final da manhã seguinte o governador chegou e foi hospedado na casa da mãe de Ubaldo Correa, que articulava a conspiração em Santarém, há meses, ficara em Belém.

Após um almoço com tambaqui assado e torta de aviú, seguiu-se doce de cupuaçu com castanha e, após, foi servido um café e um cálice de tarubá.

Chegou o prefeito em exercício e os vereadores para uma reunião com com o governador.

Começaram a preparar a resistência à volta do prefeito afastado.

“Não podemos tornar sem efeito a deliberação tomada pelo senhor seu presidente, na sessão da câmara, que reintegrou o Elias no cargo de prefeito, por esse mandado de segurança judicial?”.

“Eu não posso fazer isso, governador…”

“Como e que é, seu retardado?! És um idiota? Eu mando tu vires aqui pra me falar um não? Fui eu que te elegi, seu abestalhado! Tu queres pegar porrada agora? Quer ir pro pau de arara?”

“Por favor, não faça nada comigo, o senhor está entendendo errado, eu até pedi que nos dessem 24 horas para esperar o senhor chegar e saber qual ordem temos que cumprir. Eu estou aqui pra colaborar!”

“Não precisa chorar também, seu égua! Muito bem, assim é melhor para todo mundo. É mais rápido. Posso ir pro meu tênis amanhã. Dona Rosely, acompanhe o chorão para ele assinar o que precisa pra anular essa posse caricata que o leso estava dando pro Elias e seu vice. E sai todo mundo! Eu quero agora conversar a sós com o prefeito Elinaldo.”

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