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Grilagem, Justiça, Política, Terras

A guerra com o maior grileiro do planeta (1)

Texto de 1996

Em novembro de 1996 o jornalista Oliveira Bastos me mandou uma carta virulenta em nome da Construtora C. R. Almeida, da qual era então empregado. Começava uma guerra de aniquilamento que me absorve até hoje, passados 10 anos. Na época, o empreiteiro Cecílio do Rego Almeida estava certo de que se apossaria facilmente de terras públicas do Pará, formando, através de apropriação ilícita, a grilagem, o maior imóvel rural do mundo, com algo entre 5 e 7 milhões de hectares.

Como eu era um estorvo a esses planos, tentaram me intimidar. Não conseguindo, recorreram à justiça, através de sucessivos processos, propostos diretamente ou através de interpostas pessoas, de forma explícita ou disfarçada. Ainda não conseguiram me esmagar, mas continuam a tentar.

Este capítulo documenta a resistência de um jornalista ao poder do dinheiro. Ironicamente, Oliveira Bastos, como Cecílio Almeida, nasceu no Pará. O empreiteiro se estabeleceu no Paraná com uma grande empresa de construção civil, cliente beneficiada por muitos contratos durante o regime militar. O jornalista fez nome como um crítico literário e por seu texto ferino. Com esse estilo, tentou me dar um golpe mortal na troca de cartas que travamos.

As cartas de Oliveira Bastos e minhas respostas foram publicadas nas edições 151 e 152 do Jornal Pessoal, referentes à 2ª quinzena de novembro e 1ª quinzena de dezembro de 1996. A partir dessas cartas, Cecílio do Rego Almeida não pararia mais de me atacar.

Seguem-se os textos conforme publicados no jornal.

*

A têmpera de um jornalista é apurada na polêmica. Mas alguns contendores não se apresentam ao combate para testar forças, buscando o esclarecimento da opinião pública. Seu objetivo é o de intimidar, ou destruir. É a maneira de impedir que do confronto dos antagonistas resulte a verdade e ela passe a ser um patrimônio de todos – e não um instrumento a serviço dos interesses dos mais poderosos, ou das acomodações rentáveis.

A carta enviada por Oliveira Bastos, “coordenador de projetos especiais” da Construtora C. R. Almeida, publicada nesta edição, se integra à tradição de gredir para eliminar na origem debates incômodos. Ao recebê-las, duas emanas atrás, me lembrei de um texto de Nelson Tarquina, um importante teórico da comunicação na Europa, que serviu para reforçar convicções de há muito incorporadas à minha consciência.

Observa Tarquina: “Alvo da ação estratégica de múltiplos agentes sociais, os jornalistas e as empresas jornalísticas são também, muitas vezes, os alvos preferidos da crítica quando as más notícias ou a não existência de boas notícias frustram os outros agentes sociais. Segundo a lógica da época grega, quando, perante uma má notícia, a solução era a de matar o mensageiro, hoje a estratégia principal consiste em pôr em causa a seriedade e o profissionalismo dos jornalistas; alguns agentes sociais, mesmo ocupando posições de responsabilidade, ainda recorrem à ameaça física, à ação legal ou à pura calúnia”.

Pessoas que me tinham em boa conta mudaram de opinião a meu respeito exatamente quando atingi seus interesses, contrariando-os. Aí, de súbito, virei vilão. Já me acostumei a isso. Não me causa nenhum dano perder amizades ou romper relações agradáveis se o preço de as preservar é omitir a lesão que estejam causando ao interesse público. Também não afeta o meu relacionamento pessoal a divergência de ideias, mesmo que exercida com paixão e radicalismo, se o opositor sabe distinguir os dois níveis.

A agressão ardilosamente perpetrada contra mim por Oliveira Bastos não é um bom combate. Como o leitor poderá verificar na resposta que dou nesta edição à carta, seu objetivo é me afastar do caminho da C. R. Almeida e não dialogar sobre o projeto da empresa para uma área de quase cinco milhões de hectares no vale do Xingu, que seria um dèrnier-cri em desenvolvimento autossustentável. Na verdade, é apenas um pretexto de fachada. Não há franqueza nem lealdade na iniciativa de Bastos.

A malícia começa no envio da correspondência. Ela me chegou no dia 30 de outubro, com um bilhete de encaminhamento do advogado Avertano Rocha. Avertano diz que a carta estava em suas mãos “há algum tempo”, mas que não a repassou ao destinatário “em razão do próprio autor da epístola (…) ter-me dito, por via telefônica, encontrar-se diante de um apelo do teu irmão, o jornalista Raimundo Pinto, que pediu-lhe entendimento entre vocês dois, entendimento esse que nunca chegou a acontecer, pois unilateral, de vez que o teu jornal voltou a atacar, pessoalmente, o meu velho amigo de geração intelectual”.

Acrescenta Avertano que Bastos voltara a enviar-lhe por fax a tal carta, “que é datada de 14 de setembro e que retorna aos meus arquivos mais de um mês depois de sua elaboração [grifo meu]. A remessa de uma segunda cópia tem um claro objetivo: a de que a carta chegue, finalmente, ao seu destinatário”.

Cumprindo a vontade de seu “velho amigo”, Avertano decidiu me enviar a nova cópia da carta, arrematando com uma advertência: “Creio que saberás fazer bom uso dela e isso significa, evidentemente, dar-lhe publicidade no teu próprio jornal, com espaço, diagramação e destaque que destes anterioremente aos ataques feitos ao Oliveira Bastos”.

“Menas” verdade, dr. Avertano. A carta de Oliveira Bastos está falsamente datada do dia 14 de setembro. Como demonstro em minha resposta, a seguir, ele jamais poderia ter escrito o tal papel no dia 14, um dia antes do fato gerador da presente polêmica e cinco dias antes do meu artigo, ao qual ele retrucou epistolarmente. A carta com data atrasada é um engodo. Algo parecido ao que fez Hélio Gueiros em 1991, me mandando uma carta pornográfica para me intimidar, sem que ela precisasse necessariamente se tornar pública.

Outra inverdade é o tal pedido de entendimento do meu irmão para o Oliveira Bastos. Raimundo me disse que, na conversa telefônica, Bastos mandou um recado: não queria brigar comigo, mas o faria se eu continuasse a atacá-lo. Nunca propôs o tal entendimento, mesmo porque não tinha qualquer tipo de delegação minha para esse fim.

Também não é verdade ser o desejo pessoal de Oliveira Bastos que eu publicasse sua carta, nem este objetivo está claro no texto. O que está claro é exatamente o inverso: “Não reclamo, com esta carta, nenhum direito de resposta”, escreveu Oliveira Bastos. Depois, ele me ligou de Brasília para reafirmar que meu entendimento é que era o certo, não o de seu “velho amigo” (putativo?): eu só publicaria a carta se quisesse; ela era para meu conhecimento pessoal.

Depois de refletir, achei que devia publicar a carta, na íntegra, com todas as agressões que me faz, usando como arma a mentira. Se Oliveira Bastos escreveu tudo aquilo, é porque já andou dizendo isso por aí aos mais chegados. O que está nas ruas tem que vir para a imprensa, socializando um conhecimento que costuma se circunscrever a confrarias favorecidas.

Não se trata apenas de um duelo pessoal. Quanto a mim, espero que Oliveira Bastos cumpra todas as suas promessas e ameaças, inclusive a de ajuizar uma ação para me fazer devolver o que o Iterpa me pagou por assessoria que dei ao instituto.

Quanto ao que é de interesse público, materializado em milhões de hectares, que valem milhões de reais, espero que as instâncias formalmente competentes cumpram cada uma a sua parte neste enredo para que as palavras não fiquem jogadas ao vento.

Estou disposto a sustentar, seja lá com quem for, o que aqui publiquei: a apropriação de terras feita pela C. R. Almeida é uma grosseira “grilagem”. Não há, no cartório imobiliário de Altamira, qualquer documento legal atestando a transferência das terras do patrimônio público para o domínio particular.

Há, isto sim, referência a “títulos hábeis”, que ninguém sabe o que sejam, nem viu (e que, com tal denominação, jamais deveriam ter sido aceitos para registro pela titular do cartório, seja lá quem for a requerente, C. R. Almeida ou Kramm).

Agora, os advogados da empresa vão tentar provar que a origem remonta a títulos de sesmaria. Mas isso é promessa, que, a meu ver, não cumprirão. Quanto à prescrição do título, ele pode ser argentário, cinquentenário ou o que lá seja. Esta exigência de posse fática como pré-requisito aplica-se mesmo à legitimação das sesmarias não confirmadas (no que não acredito, naquela área do Xingu). Ocupação física da área a C. R. Almeida não tem e a dos antecessores, os seringalistas, se legitimava em aforamentos já caducos. Portanto, a terra é pública.

O projeto ambientalista da C. R. Almeida pode até ser maravilhoso, como assegura o “coordenador”. Mas não há terra para nela assentá-lo. O processo de encaminhamento tem que ser inverso: só depois da demonstração do domínio privado é que se poderia examinar o projeto, que, aliás, também continua no plano metafísico e retórico.

Não é porque a empresa diz que tem o deslumbrante projeto que o governo deve se considerar obrigado a oferecer-lhe as terras. Nesse caso, o simples anúncio do projeto funcionaria como uma gazua fundiária. O governo deve atrair empresários (no que tem sido ineficiente), mas há empresários e empresários. Com seu projeto do Xingu, C. R. Almeida está no segundo enquadramento.

Por enquanto, o governo assiste a esse litígio como se se tratasse, realmente, de uma queda-de-braço privativa entre Lamarão & Pinto e Almeida & Bastos. Ora, o que está em questão é uma área que o poder público pode utilizar em benefício da coletividade ou que uma empresa pode transformar em lucro indevido. Lucro e bem comum podem se combinar, mas de uma forma lícita.

O Iterpa diz que essa via legal não existe. A prova dos noves do litígio cabe à justiça, onde o processo já está em andamento. Se a empresa quer começar a dialogar com honestidade e para valer a nível administrativo, por que não renuncia previamente ao registro fraudulento e passa a negociar tecnicamente em cima do tal projeto?

É verdade que uma ou outra parcela do órgão não pensa assim e, ao que parece, tomou iniciativas desastrosas na aproximação com a C. R. Almeida, o que se irá apurar e revelar. Mas a posição oficial do instituto, o representante do Estado para questões fundiárias, já foi firmada em juízo. É preciso fortalecê-la.

O governador, que tem programa diário nos veículos de comunicação, deixa passar semanas e meses sem dizer uma única palavra a respeito, apesar de o problema da terra ser o mais grave do Estado (ou será justamente por isso?). Não só silencia oportunisticamente, como não consegue transformar em prática sua retórica em favor do campo, mais um item no currículo de um governo vocabular.

O Iterpa é, realmente, um órgão desaparelhado, que, com sua fachada, consegue fazer alguma coisa, mas está oco por dentro, como um cenário de Hollywood. Mesmo os funcionários da linha de frente ganham miseravelmente mal e a estrutura de apoio é de uma pobreza incompatível com a gravidade das funções que deveria desempenhar. Desde Eldorado de Carajás, o governador Almir Gabriel se tornou refém da inércia.

Talvez por isso Oliveira Bastos esgrime como ameaça uma evolução conflituosa na área que a C. R. Almeida tenta “grilar”. Diz que ela poderia acabar como reedição de Eldorado tentando reavivar traumas catárticos no governador.

A empresa busca cooptar os moradores locais com assistencialismo e apresentando-se como parceira dos nativos contra garimpeiros invasores, investindo em relações públicas e na manipulação dos atores no cenário. Mas todas as instituições presentes no Xingu assinaram um manifesto apoiando a posição do Iterpa contra a C. R. Almeida.

No documento encaminhado ao governador a 6 de setembro, as 17 entidades que o subscreveram dizem que o município “vive sobressaltado pelo anúncio de megaprojetos que acabam entregando a particulares centenas de milhares e até de milhões de hectares do seu solo”. Elogiam a ação de cancelamento do registro da C. R. Almeida proposta pelo Iterpa e dizem que o combate à “grilagem”, com o retorno das terras ao controle do Estado, “além de permitir o reconhecimento dos direitos dos atuais moradores e das populações indígenas da região, oferece ao governo espaços enormes para projetos de interesse social a serem definidos em diálogo com a comunidade local”.

Ainda assim, de fato, o governo precisa ter maior presença na área – e presença qualitativa – para prevenir o jogo que a C. R. Almeida começou a praticar ali, não para preparar saudavelmente as bases de um empreendimento sério, mas para criar massa de manobra e bucha de canhão.

Uma outra dimensão a ser considerada é a da ameaça de extorsão que estaria pairando sobre a empresa. Estranhamente, Oliveira Bastos não considera ser mais obrigação da vítima da chantagem denunciá-la, apontando os nomes a serem submetidos a apuração e, se for o caso, punição. Carlos Lamarão, diretor do Departamento Jurídico do Iterpa, agiu corretamente ao comunicar à polícia a informação que Oliveira Bastos lhe passara.

Bastos diz que um diretor do Iterpa e um advogado, nominados na conversa, inclusive por Lamarão, seriam partícipes desse assédio. Por que não fez a denúncia por escrito? Ou quer apenas valer-se dos efeitos da insinuação? A despeito dessa má-fé, acho que o Iterpa deverá logo instaurar logo sindicância para apurar essa “avalanche de gente safada, entre os quais alguns se dizendo amigos de diretores do Iterpa e querendo vender facilidades para nós”, como diz Oliveira Bastos.

Ele também ataca o juiz que, interinamente, na comarca de Altamira, proibiu novas averbações à margem do registro imobiliário em nome do grupo C. R. Almeida, congelando negociações futuras até o julgamento da lide. Bastos diz que o juiz Torquato Alencar favoreceu o Iterpa porque o unstituto ajudou a pagar o frete do avião que conduziu o juiz à comarca durante a última eleição.

O presidente do Iterpa, Ronaldo Barata, retruca que esse tipo de ajuda é comum em período eleitoral, em virtude da carência de meios próprios da justiça, e que nunca visou influir sobre a decisão do julgador. Mas realmente é um mau hábito, de moral reprovável e, no caso específico, inconveniente. O Iterpa, no mínimo, foi desastrado, ignorando a associação que poderia ser feita entre uma e outra situação. Criou uma fonte de constrangimento para o juiz e de suspeição para si mesmo.

A convergência da ação administrativa do Iterpa com os projetos políticos de seu presidente tem sido um dos pontos mais vulneráveis da administração Ronaldo Barata. É legítima a pretensão de Barata de conquistar um mandato eletivo. Não é correto, porém, confundir sua ação administrativa com a ssua militância política, o que ele tem feito. Essa falta de distinção leva-o a cometer erros e pode custar-lhe muito caro no futuro.

Não tenho dúvida que o Iterpa melhorou sob a atual gestão, mas também não ignoro que está muito distante não só do desejável, mas até mesmo do possível. Na conversa por telefone, Oliveira Bastos se referiu à perda de prazo em uma ação na qual o Iterpa de tornou revel.

Insinuou que essa perda de prazo foi intencional, favorecendo alto funcionário do Iterpa, que teria sido patrono do interessado em uma outra questão no Marajó. A negligência nesse episódio seria um contraste com a vigilância do instituto obre a C. R. Almeida.

De fato, o incidente ocorreu e há indícios de que houve culpa ou dolo na falha. O episódio precisa ser imediatamente apurado pelo Iterpa, através de inquérito, se possível com acompanhamento do Ministério Público. Mas o objeto da ação na qual o Iterpa se omitiu é uma pequena área no Mosqueiro, liliputiana em comparação com o mastodonte fundiário do Xingu, que a C. R. Almeida quer colocar no seu redil.

Se não existe meio honesto, sendo a honestidade uma condição absoluta, há o pequeno e o grande roubo. Ambos têm que ser prevenidos ou combatidos, mas não se deve perder a dimensão específica de cada um deles. Oliveira Bastos joga um boi na polêmica para que a manada passe incólume, à distância da opinião pública.

Eu teria preferido poupar-me de mais uma luta na qual a lama é usada como arma. Bastos até ofereceu essa possibilidade no telefonema que me deu: ele virá a Belém e poderemos conversar. Mas prefiro que, se isso ocorrer, as cartas já estejam sendo colocadas à mesa, ao invés de ficarem escondidas nas mangas de crupiês ou virarem figurinhas para trocar em encontro reservado.

O árbitro desse litígio não deve ser a conveniência dos contendores, mas o distinto público. Na esperança de servi-lo, espero que ele não apenas continue a acompanhar os capítulos desta novela, mas se manifeste a respeito. Só assim terá valido a pena aceitar esta polêmica, tão sordidamente mostrada pelo outro lado, quando o destino justo da carta de Oliveira Bastos – e do próprio remetente – seria a lata de lixo.

(O título original foi alterado)

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