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Cultura, Memória

Belém: a Cartago tropical da cabanagem

No auge dos sangrentos combates travados rua por rua em Belém, entre rebeldes e legalistas, a destruição provocada pelos tiros de canhão dados pelos navios estacionados ao largo da capital do Pará, pelos incêndios provocados pelos cabanos e as numerosas mortes, transformaram a cidade em uma nova Cartago. É o relata carta que uma pessoa não identificada escreve ao irmão, que está fora (talvez no Maranhão).

Apesar da descrição da violência e das maldades cometidas pelos cabanos, o autor da carata conclui que “muito melhor passamos no tempo de Vinagre, e se nós adivinhássemos que as providências do Rio [de Janeiro] seriam as que vieram, então tínhamos feito causa comum com os malvados, porque ao menos não éramos roubados, nem nossas caras famílias assassinadas, e passávamos com abundância, visto que agora estamos morrendo de fome, e a sede; vejam, veja o governo central estas desgraças! Que tem a assembleia feita ao Pará! Ah, meu caro irmão, antes viver no inferno que debaixo de tão fraco governo”.

A correspondência particular publicada no jornal Diário do Rio de Janeiro dos dias 30 e 31 de dezembro de 1835, narrando os acontecimentos que antecederam e precederam a segunda tomada de Belém pelos cabanos, ocorrida em agosto. Ricardo Conduru destacou fatos como a morte de Antônio Vinagre ocorreu em batalha no largo da Memória; que os cabanos se utilizavam de caroços de açaí como munição; a descrição de uma bandeira cabana encarnada, com uma cruz amarela e laço branco no centro; a utilização pelos legalistas da antiga casa de Ópera que ficava contígua ao Palácio do Governo (e que se chamava Orsi) durante os combates; elogios ao governo de Vinagre, entre outras revelações.

Esse precioso documento foi localizado por Ricardo Conduru, que se tornou o mais ativo pesquisador da cabanagem. Ele já publicou centenas de documentos no seu blog Cabanagem Redescoberta, dando uma das maiores contribuições ao melhor conhecimento da revolta popular.

Reproduzo o documento. Para facilitar a leitura, criei alguns parágrafos no texto original.

Parámeu caro irmão e amigo

Pará, a bordo da corveta Defensora surta em frente à ilha Tatuoca, 14 de setembro [de 1835]

É com a mais profunda mágoa que vos vou comunicar os desastrosos sucessos da malfadada província do Pará, e principiarei por alguns fatos antigos.

Depois da posse desse Presidente [se refere a Manoel Jorge Rodrigues], as reuniões pelo interior foram amiudadas. O Pinheiro foi o quartel dos malvados, e ali tomavam todas as canoas e mantimentos, tendo-se por último apossado de uma canoa do americano Benjamim e todas as sacas de arroz; o presidente manda chamar ao famigerado Francisco Vinagre e Eduardo [Angelim], e manda-os lá para, por moderação, pedir que os dispersassem, eles em vez de assim o fazerem, concertam com os malvados melhor seu plano, e trazem respostas paliativas; passados alguns dias, deixam um destacamento no Pinheiro e, reunidos em massa, vão a desgraçada vila de Vigia, e atacando-a de surpresa, matam a tudo que encontram no número de 100 cidadãos, roubam, estragam todas as propriedades, não escapando até o templo.

É preciso notar que antes deste ataque vieram muitas pessoas, inclusive o padre vigário, pedir ao presidente providências e com especialidade uma escuna de guerra. Estas providências foram paliativas, segundo o louvável costume, de sorte que quando a escuna partiu já a Vigia estava arrasada, conserva-se a escuna algum tempo em frente da vila servindo de guarda a algumas canoas que ficaram rodeadas em torno da escuna com o resto das famílias; porém, o presidente, a conselho do célebre José de Brito Inglez, mandou retirar a escuna, que chegou à capital com 20 e tantas canoas carregadas de mulheres e homens nos dias do fogo, de que abaixo trato.

Vamos ao começo: poucos dias antes da partida da escuna, foi postar-se o brigue Cacique em frente do Pinheiro, e como os malvados lhe fizessem fogo postando uma peça na casa de Bulhão, o brigue levou a fazer muito fogo sem ofender os malvados porque eles se embrenhavam, ficando as casas arruinadas, tanto do fogo do mar como dos malvados que até o papel pintado das paredes tiraram, arrombando paredes [e] matando todo o gado e criação, entretanto que isto continua progressivamente, aparece uma denúncia de haverem pretos levantados na fazenda dos frades do Carmo, e a requisição do padre prior, vai uma pequena diligência, em cujo caminho morreu um oficial de marinha e alguma gente da ordem.

Anterior tanto a este fato como ao de Vigia, Vinagre passeia nas ruas da cidade e até com o almirante [John] Taylor, as participações do interior cada vez são mais aterradoras e certas, por isso que os malvados reunidos vão assolando todos os pontos por onde passam, roubando os gados e matando a quem encontram, requer-se ao presidente que mande vir gente de Cametá e de outros pontos da província que se conservaram sempre intactos, como Bujaru, Abaeté, Marajó, Gurupá, onde tinham, e têm, um destacamento de 300 homens, porém, ele a nada acede, por isso que ninguém confia, senão de Taylor, vão as coisas em progresso, até que depois do rompimento de Vigia e por haverem imensas requisições dos cidadãos em número de 500 pouco mais em armas, se dá buscas em diversas casas e prendem-se alguns malvados, e escapando o Antônio Vinagre, que de tempos estava no Acará reunindo a canalha, o Eduardo e irmãos Cearás; na busca dada colheu-se para mais de 400 armas, granadas, munições, cornetas. Estas buscas e prisões duraram 3 ou 4 dias.

Sabe-se com certeza que os malvados pretendem vir à cidade, o presidente cuida em entrincheirar o palácio fazendo uma varanda por dentro do quintal e certo arranjo na casa da ópera contígua ao Palácio, e não se cuida em defender a cidade em torno amenos os lugares [em torno ao menos dos lugares] por onde deveriam vir os malvados; José de Brito Inglez que nunca teve acolhimento algum, mete-se de gorra em Palácio, e afinal consegue ser ajudante às ordens do presidente, desde a sua entrada mudou-se a cena como do dia à noite, porque ele ardilmente, e manhosamente, manejava a intriga contra todos os que não eram de sua afeição; finalmente aparece o dia 14 de agosto, e às 10 horas, pouco antes, aparece uma denúncia de estar a canalha em Nazaré, sinais para as embarcações e rebates, desembarca tropa da corveta inglesa e portuguesa, postando-se aquela em casa de Campbell, e esta de Costa, cônsul, marcha em piquete de 100 paisanos para Nazaré com alguns soldados e chegando a [ao largo da] memória rompe o fogo da artilharia e mosquetaria dos malvados, sendo logo morto o Antônio Vinagre, e ferida alguma gente nossa e morta alguma dos rebeldes, vindo gravemente ferido o filho do presidente, ajudante de ordens Jerônimo (que depois da entrada do Brito Inglez já não eram bem tomadas as suas opiniões pelo pai), que pereceu à noite; os malvados entraram em massa na cidade pelo bairro da Campina com as peças de artilharia (que Vinagre no dia da posse do presidente fez conduzir em um barco para o Acará com munição e armamento, isto pelos olhos do governo, sem que lhe obstasse, e depois pedindo-lhe que lhe fosse buscar o barco e munições, ele vai, e traz o dito barco e 20 armas velhas), principiam a arrombar as casas e entram para fazer o fogo, havendo um grande entrincheiramento na do Eduardo, na rua da Paixão; a tropa inglesa conserva-se na casa de Campbell que embarcou no 2º dia com tudo o que tinha o inglês, a portuguesa resiste ao fogo indo atacar os malvados no largo das Mercês, visto que tinham-se entrincheirado na casa da opera de Orsi, e depois retirou-se, tornou a desembarcar, e levou soldados feridos e mortos 2 ou 3; o fogo continua dentre as casas, e os malvados apossados da Campina principiam a roubar lojas, tavernas e todas as casas, conduzindo uns os roubos com as tapuias, e outros fazem fogo, atacaram por 6 vezes o Trem, e nada conseguem senão perderem de um ataque 30 e tantos tapuios, e assim progressivamente, não tendo estrago maior a nossa gente mais que a perda de 3 ou 4 homens paisanos, e ferido 1; são atacados os diversos pontos dos malvados pelos paisanos, marujas, e alguns soldados, vem de dia a dia muitos feridos, principalmente maruja e paisanos, e mortos; os paisanos atacam sem oficial que sirva de chefe, uns avançam e poucos recuam, o que acontece em todas as partes; tomam-se alguns pontos dos malvados, porém, outros não é possível, como a casa de Eduardo, por isso que não se cerca a retaguarda do inimigo; ao 4º dia de fogo os navios de guerra brasileiros metem panos, o que esmoreceu a nossa gente e animou a canalha.

O tenente-coronel Marques oferece um plano, e é rejeitado pela opinião de Brito Inglez, o palácio enche-se de muitas famílias, e alguns oficiais de noite principiam a divertir-se em vez de cuidarem da defesa da província, os paisanos já se achavam muito cansados porque o fogo durou 9 dias e não são militares, entretanto, estavam em seus pontos; finalmente no dia 22, de madrugada, embarcou o presidente com a tropa, e mais, deixando-se de avisar alguns pontos, por isso que ficaram paisanos em o ponto do Carmo, e outros; aqui é que eu não tenho expressões para descrever tão lamentável situação dos infelizes paraenses! Oh! Traição! Oh! Desgraça sobre todas as desgraças! Não pode ser representado um ato mais deplorável!

O convento do Carmo estava apinhado de imensas famílias, depois de romper a aurora, e chegar a triste notícia que o nosso marechal havia desamparado, e entregue a bela capital aos malvados, principiam as infelizes senhoras a correr em chusma para a praia, a fim de se embarcarem para o brigue Cacique, que estava fronteiro ao Arsenal de Marinha, a maior parte das mulheres vão ao mar, e neste número entra a cunhada do Pinto, que caindo no mar, e não aparecendo senão os dedos, é arrebatada pela maresia; porém, a muito custo, salvam-na da morte afogada, mas tomando uma canoa com outras famílias vão agora até o Guamá, onde foi segura pela escuna Bela Maria, este mesmo brigue rejeita acolher os homens que procuram salvar sua vida; por isso que os malvados fazem-lhe fogo de terra, uns a nado, outros pela praia, assim vão seguindo sua infeliz sorte, visto que o belo governo só cuidou de salvar-se; até às oito horas deste malfadado dia os malvados estão em observação e indecisos se, ou não, atacam o Palácio, correndo pelo largo com muito medo, e como vissem que o grande governo, de mãos dadas com o ilustre chefe Taylor entregaram-lhe a capital, avançam em massa, com muitos fogos do ar vão ao Palácio, e colocam ao assassínio [assassino] Eduardo na presidência; neste mesmo dia vão ao Carmo e topando 30 e tantos paisanos de resto que o guarneciam os matam todos, e começam a arrombar o restante das casas, que ainda não tinham se apossado, assassinando a tudo que encontraram, sendo vítimas do furor o coronel José Narciso, Manoel Gomes Pinto, o velho João Inácio Oliveira Cavalero, Antônio Joaquim Rodrigues Neves, todos os velhos que encontraram, e até o contador da Contadoria Serafim, no meio de sua família, matam algumas mulheres, ao final estragam tudo, sem exceção de pessoa, aparecendo neste entremeio o bom Bispo, que pedindo por algumas pessoas, conseguiu a dispensa da morte dos coronéis Garcia, Geraldo, e outros mais cidadãos em número de 13, que os prezionaram (sic), porém, até hoje não se sabe dos seus destinos; vamos a proteção dos vasos de guerra brasileiros, do Sr. Taylor, e Manoel Jorge.

Não é mister, meu caro irmão, que vos explique com a miudeza o lastimável estado dos infelizes paraenses nesta retirada vergonhosa e de há muito premeditada; se um cidadão pedia para se recolher, o não queriam; as famílias se apinham nas embarcações; pouco mais de 10 horas todos os navio levantam âncora, e fazem-se de vela para a Fortaleza da Barra, onde dão fundo, seguindo [para] a ilha Tatuoca a corveta Portuguesa com os navios mercantes portugueses, e a inglesa também com os navios ingleses mercantes, as famílias que existem embarcadas principiam a sofrer fome, assim como os homens; depois barbaramente mandam da fragata Imperatriz, e a consentimento de Taylor e Presidente, deitar algumas famílias em Una para irem para a cidade, e ali imediatamente são assassinados 3 velhos; resolvem mandar mais famílias para Cametá e Marajó, e à força fazem-nas embarcar em dois navios mercantes e nas escunas de guerra, e lá vão as infelizes para os seus desterros sem ter a quem se encostem.

A florescente rapaziada toda vê-se suja e só com a roupa que cobre seu corpo, visto que como se confiava no governo, não se cuida em salvar dinheiro, vê-se oficiais reformados nus e descalços passando misérias, pois que o mantimento faltava! Vê-se…. oh! desgraça, não mais! Vê-se sim prometer uma bolacha a uma senhora pondo em risco sua honra, escapada a brutalidade daqueles tigres; a mesma virgindade corre risco, e é insultada a bordo de algumas embarcações…; vê-se proprietários roubados sem ter uma camisa para vestir, não houve uma só pessoa que não fosse roubada, sem poder salvar ao menos seu dinheiro, visto que se confia nesse governo mandado por essa regência, que trabalhado tem para a desolação do Pará; alguns indivíduos assentam praça de marinheiro para poder escapar suas vidas, senão vão deitados a terra. A corveta Regeneração toma os feridos em número quase de 200 para ir para o Maranhão, e mais de 300 pessoas entre homens e mulheres se resolvem [ilegível] emigrados para Maranhão, ora depois de 4 ou 5 dias sobe a fragata Campista onde existe esse Marechal, Taylor, José do Brito Inglez e outros figurões, para a Ilha Tatuoca, onde fundeia, ficando a [corveta] Imperatriz acima da barra servindo de guarda às águas do mar. Diz o marechal que está bloqueada a cidade, e as canoas dos malvados passam encostadas ao mato.

Como ia dizendo, depois de haver fundeado a Campista, passados alguns dias, vai a corveta Inglesa e os navios ingleses e americanos para a cidade, dizem, para embarcar as fazendas que tinham na alfândega, o que conseguiram, e arranjando alguns negócios com o famigerado Eduardo, como o mandar pólvora devendo desembarcar na Vigia, vieram estas embarcações apinhadas de fazendas, e o Campbell e outros ingleses dizendo que foram roubados, não pelos malvados, quando as embarcações fizeram-se de vela, levaram muito fogo dos malvados com bala, isto supõe-se que foi  por combinação de Eduardo com esta cáfila de gente. É preciso dizer que quando a tropa inglesa embarcou os malvados não lhe faziam fogo e gritavam que os ingleses eram seus amigos, visto que lhe davam munições. Também um célebre cirurgião francês, que curava os feridos dos cabanos, teve a desumanidade de pedir muita soma de dinheiro para salvar alguns míseros da morte, fazendo até passar bilhete de doação de escravo, e safou-se para [o] Maranhão recheado de dinheiro e escravos: Ia fugindo do sentido (sic); continuou o espólio das infelizes famílias, indo algumas desesperadas para a cidade a entregar-se ao punhal, visto que não achavam acolhimento nesse governo que veio ao Pará para a sua total aniquilação. Da fragata Campista despedem-se com toda a desumanidade as mulheres, e outras vão indo para o seu desterro (para Cametá e Marajó, sem nada levarem), e sem saberem umas de seus maridos e outras de seus filhos e parentes. Da fragata Imperatriz, até mulheres de deitaram ao mar, morrendo algumas crianças em consequência de haver um barulho de fogo, finalmente eu não posso descrever tantas infelicidades, a maior parte das famílias foram para a Ilha Tatuoca e ali existem no mato, conjuntamente com imensa gente que existiam em diversas canoas de Vigia, e outras estão em arranjo para regressarem ao Maranhão.

Chegando um brigue de guerra inglês depois de alguns dias vai o comandante a bordo da Campista e a pretexto de se mostrar o Francisco Vinagre ao dito comandante o Taylor manda retirar as sentinelas, e muito tempo conversa com o Vinagre, tendo antes mandado lhe tirar os ferros e aliviado o lugar da prisão, que sabendo o comandante da fragata houve um barulho, e tornou o Vinagre aos ferros. O presidente [Manoel Jorge Rodrigues], o Taylor e José de Brito, em todos os ofícios que vai para a Corte e todas as providencias e para o interior assevera que a causa da retirada foi a covardia dos paraenses que não avançavam, ao mesmo tempo que se observa um grande número de mortos e feridos nos paisanos, e aos olhos do provo ficou cabalmente demonstrado que a entrega da Capital, ou retirada, foi um conserto de a muito premeditado entre o marechal [Manoel Jorge Rodrigues], Taylor e Brito Inglez, de sorte que se não houve pelas embarcações senão labéus os mais terríveis e atacantes contra os Paraenses, e insultos, que impossível é um paraense topar-se com qualquer dos valentes [ilegível], que não sofra insultos e diatribes; e foi entrega porque se oferece gente de Abaeté, Cametá e Bujaru e o presidente não quer, porque em ninguém confia, mandando depois de 3 dias de fogo vir do Bujaru e Abaeté gente, que chegou estando a grande armada em Tatuoca, e retiraram-se para seus distritos, tendo a de Abaeté um ataque com os malvados na freguesia, que ficaram destroçados matando parte, e ficou por conseguinte triunfante a legalidade nesta parte do Pará. E foi entrega, porque o Marechal cuidou em trincheiras no Palácio, e dizendo-sê-lhe que desse providências para fortificar a cidade ao redor, nada atendeu, porque os conselhos de Brito Inglez prevaleceram aos de homens amantes de sua pátria e, enfim, o presidente já é quinquagenário, quase louco, e entregou-se todo ao ingrato Brito, e por consequência desgraçou a capital do Pará e seus habitantes. O Trem se achava com cento e tantos homens dispostos belissimamente, o palácio guarnecido, o bairro da cidade todo livre dos malvados que não tinham munição, por isso que serviam-se de areia, caroços de açaí e tipos para balas, esperava-se pela gente de Bujaru e Abaeté, esperava-se por mais tropa de Maranhão, que depois chegou 75 soldados, que motivo, pois, havia para entregar-se a cidade??! [ilegível], foi o ingrato Brito encasquetar ao velho presidente, qual o de ser assassinado pelos cidadãos que guarneciam o palácio, como se nós fôssemos como ele, porém, se ele se valeu deste manejo foi por medo, e fazer bem o seu papel.

Depois da entrega da cidade continuam as mortes cada vez mais, muitas donzelas tem sido forçadas e defloradas, e algumas mulheres assassinadas; existem imensos pretos armados, e todos aqueles escravos que vieram com os malvados são forros por um mero escrito; os negros tem feito muito estrago, e os malvados matam-se por causa da partilha dos roubos; existem partidos, porque o Padre Casemiro quer ser presidente, o preto Veríssimo Patriota, que já foi escravo de Bernardo Ferrão, também quer ser presidente, de sorte que já quiseram assassinar ao Eduardo, andam todos vestidos com calças e camisas vermelhas, inclusive o Eduardo, e trazem um laço branco; a bandeira é encarnada com uma cruz amarela, e um laço branco no cento (sic), isto sabe-se por canoas que de lá tem vindo com algumas mulheres fugidas, finalmente vai tudo a pior; os corpos mortos estão apinhados nas ruas, e depois de podres, queimam, não há uma galinha porque os malvados tem roubado todas as casas, e arrombado portas e janelas, sem exceção.

O presidente não pode ver um paraense que lhe não lance expressões as mais atacantes, em todas as conversas e ofícios os trata por covardes, e que eles foram as causas da retirada; os paisanos não eram militares, porém, não deixaram os principais pontos senão na ocasião desse embarque, e foram os mais feridos, e mortos; muitos oficiais não saíram nunca de palácio, e estes não são paraenses, foi a desgraça que ajudou a nossa perseguição, e nada mais!

Nos dias do fogo manda-se passar ao Vinagre, e João Aranha, de uma para outra embarcação de guerra para ser enforcado, e depois revoga-se esta ordem, o caso é que se diz publicamente que o Vinagre deu muito dinheiro em prata e ouro a Taylor; ontem vindo a Barbara Prestes da cidade trouxe nove contos e tantos mil réis em prata e ouro, e por desconfianças, veio-se a saber que o dinheiro tinha sido mandado pelo Eduardo ao Geraldo Ceará, para o Vinagre comprar sua soltura, cujo dinheiro (não sei por que fatalidade) foi tomado pelo presidente e depositado.

Existe em Cametá quase todas as famílias da cidade emigradas, e estão dispostos os cametaenses otimamente para bater o inimigo, mandaram pedir armamento e munições, e diz-se que pretendem ir restaurar a cidade, independente do Marechal e Taylor, por cujo fim mandaram vir gente do sertão, e não estão contentes com o governo, e nem há um só paraense que assim não esteja, bem como toda a tropa do Maranhão e marinha, porque a fome tem sido demais, tem-se passado tempo só a arroz e bebendo água salgada. Depois que o presidente desembarcou para tomar posse, Taylor apresentou a Campbell um mapa da força de mar e terra, e para que é isto? Trama! Fala-se publicamente que os ingleses pretendem tomar conta do Pará para o que vão buscar gente; todos os ingleses têm a audácia de dizerem que foram roubados pela força da legalidade, isto só sofrem os infelizes paraenses. Veja agora a regência os males que tem causado ao Pará, mandando uma expedição de vasos de guerra vazios, e com um chefe que foi desprezado pelo seu governo, eis aqui os frutos que nos têm dado os estrangeiros no serviço nacional, e que lamentável situação reduziu a bela província do Pará e seus habitantes! Ah! O que é mais sensível é ver-se como andam as senhoras, umas descalças, outras rotas, com vestidos emprestados, seus ouros e joias roubados, passando malissimamente pelas embarcações, algumas, se vão para um navio não a querem receber, finalmente eu não posso escrever tão cruel estrago, pois que a destruição do Pará foi outra Cartago; os proprietários mandam deitar seus escravos no mato, visto que não podem nem ter consigo, nem levá-los para onde vão, visto que os navios mercantes são poucos, nada de mantimentos e aguada.

Havendo tanto tempo para o Marechal prevenir a sua retirada, deixou ficar em palácio todo o mantimento e os papéis da secretaria, no Trem pólvora e munições, finalmente não se pode dizer se não foi entrega, entregando-se a capital aos malvados, de sorte que muito melhor passamos no tempo de Vinagre, e se nós adivinhássemos que as providências do Rio [de Janeiro] seriam as que vieram, então tínhamos feito causa comum com os malvados, porque ao menos não éramos roubados, nem nossas caras famílias assassinadas, e passávamos com abundância, visto que agora estamos morrendo de fome, e a sede; vejam, veja o governo central estas desgraças! Que tem a assembleia feita ao Pará! Ah, meu caro irmão, antes viver no inferno que debaixo de tão fraco governo.

Agora parte o brigue Cacique com mais de 100 senhoras emigradas para Cametá, umas vão unicamente com a roupa que tinham no corpo, expostas às esmolas, e outras com aquilo que puderam trazer, enfim, é um nunca acabar de desgraças, e viva o Marechal, Taylor e a Regência; agora resta que os malvados vão a Cametá, o que Deus não permita.

O presidente cada vez mais trata malissimamente os filhos do Pará, e alguns oficiais de marinha seguem o exemplo, o que não acho na oficialidade da embarcação onde existo.

Eis aqui, meu caro irmão. Em resumo, poucas coisas ditas sobre o infeliz Pará, se tudo contasse, não havia papel, é de supor que o governo veja os males causados a esta província, porque nem ao menos mandou um Antero (sic), e oficial de marinha, mas não estrangeiro por comandante da esquadra só in nomine. Desejo-vos a mais perfeita saúde conjuntamente com vossa família. Vosso irmão e amigo.

(De carta particular)

Discussão

2 comentários sobre “Belém: a Cartago tropical da cabanagem

  1. Há ainda um ponto a se destacar. Vicente Salles em seu livro “Memorial da Cabanagem” (página 98), explana que “As ideias lançadas por Luiz Zagalo, Patroni e Batista Campos tiveram ampla repercussão entre os escravos, mas houve líderes populares que exerceram, sobre eles, enorme influência. Um deles, crioulo liberto, espalhava ideias ou ‘doutrinas incendiárias’, de igualdade social, deixou na história apenas o apelido com que era conhecido: Patriota.” Com a carta acima publicada, agora sabemos o nome do ex-escravo, o qual chamava-se Veríssimo Patriota. Sem dúvida, um resgate histórica que Salles teria gostado de saber.

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    Publicado por ricardoconduru | 28 de abril de 2024, 17:01

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