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Imprensa

A história na chapa quente (230)

Niomar: primeira dama

da imprensa brasileira

(Artigo publicado no Jornal Pessoal 312, de novembro de 2003)

De 1946, quando casou com Paulo Bittencourt, a 1963, quando o marido morreu, Niomar Moniz Sodré Bittencourt foi uma mulher poderosa sem precisar fazer nada. O poder lhe era conferido por extensão pelo Correio da Manhã, o mais poderoso jornal do país.

Seu sogro, Edmundo Bittencourt, colocou o primeiro exemplar do jornal nas ruas em 1901. Consolidou sua influência permitindo-se criar uma instituição que o comercialismo dos nossos dias tornou peça de museu: o jornal do dono.

O Correio se permitia, entre os escorregões comuns na grande imprensa, ter princípios. E exercê-los. Ainda que pela bitola da cabeça do dono, este, presumindo-se legitimado por sua preocupação em pensar além do próprio nariz ou da pança (dos músculos, dir-se-ia hoje, se os sarados executivos de algumas empresas jornalísticas atuais costumassem se dedicar a essa atividade estranha: pensar).

Dizia-se que a mudança de redator-chefe no jornal tinha mais repercussão do que qualquer alteração nos ministérios. O Correio fazia suas jogadas comerciais e tinha suas parcialidades (a mais famosa delas foi ter colocado no índex o escritor Lima Barreto, que satirizou o jornal nas muito memoráveis Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de 1909), mas defendia causas e profligava ideias. Por isso era tão temido.

Herdeira de Paulo Bittencourt, dona Niomar viu-se na pele de Katherine Graham, a célebre amazona do Washington Post. A associação é imediata e, em certa medida, superficial. Não conheci Mrs. Graham, mas troquei meia dúzia de palavras com dona Niomar. Ela partilhava a teimosia e a coragem dos Bittencourt (mais do sogro do que do marido), fazendo-se merecedora de respeito e reverência pelas atitudes que tomou depois do golpe militar de 1964. Os que a cassaram e prenderam arbitrariamente tiveram que soltá-la. Mantê-la atrás das grades lhes acarretaria um enorme desgaste, dada a valentia de Niomar, baiana de têmpera.

Mas ela tinha plena consciência do que estava fazendo quando corrigiu os rumos do jornal, francamente favorável à deposição do presidente João Goulart nos “idos de março”, e diametralmente contrário à ditadura institucionalizada (e devidamente constitucionalizada por Francisco Campos, o Chico Ciência) do marechal Castelo Branco?

Não há jornal eterno

Nenhum dono de jornal deve achar que seu poderoso instrumento de ação pode acabar. Nenhum poderoso, aliás, acha que seu cutelo está sujeito a evaporar (embora Karl Marx tenha alertado: tudo que é sólido desmancha no ar).

Houve um momento em que, sem perder a dignidade, o Correio da Manhã podia ter sido preservado do massacre que lhe moveu o herói de Mecejana e seu ministro da Guerra, o também marechal Costa e Silva. Ao invés de se mover com sagacidade e cautela, porém, o jornal desafiou abertamente os centuriões da Escola Superior de Guerra, talvez julgando-se eterno. Foi um erro quase infantil porque esquerdista.

O outro erro, fatal, dona Niomar cometeu quando preferiu arrendar o jornal, sufocado pela perseguição governamental, não à Folha de S. Paulo, que era do ramo, interessada em salvar o título do jornal, mas a um grupo de espertos empreiteiros cariocas, empenhados em viabilizar a candidatura do coronel Mário Andreazza, ministro dos transportes, à sucessão do general Garrastazu Médici.

A patente inferior tirou o simpático Andreazza da disputa e os empreiteiros, que formavam sua guarda pretoriana, não titubearam um segundo em jogar no lixo a empresa recebida. O Correio da Manhã morreu de inanição, em 1974. Hoje é um prédio em ruínas na rua Gomes Freire, na Lapa.E como dói.

Dona Niomar seguiu o destino do seu jornal, quase 30 anos depois, neste mês, aos 87 anos, depois de ter sido minada por sucessivos infortúnios e por uma doença implacável. Sua morte parece arrematar, num único ano, o acerto de contas do tempo com um momento da história do jornalismo brasileiro e, particularmente, do carioca.

Primeiro foi Manuel Francisco do Nascimento Brito, genro da condessa Pereira Carneiro, que fez o Jornal do Brasil passar à frente do Correio e dos demais concorrentes da mídia impressa no Rio. Depois, Roberto Marinho, que deslocou a todos ao perceber que o poder mais efetivo, o do dinheiro, se transferia do jornal para a televisão.

Uusou-a como base de um império de comunicação em relação ao qual apenas os Diários e Emissoras Associados, de Assis Chateaubriand, guarda alguma comparação. E, antes de 2003 terminar, findou-se dona Niomar.

Na lápide desse “jornalismo do dono” talvez se deva colocar duas inscrições que lhe deram fim: a transferência da capital federal, do Rio de Janeiro para Brasília, e o fim de um modelo de desenvolvimento baseado no populismo e na democracia parlamentar.

Mesmo quem entrou nessa história já quando as luzes começavam a ser apagadas jamais esquecerá o que foi a redação de um desses grandes jornais cariocas (havia ainda o Diário Carioca, o Diário de Notícias, O Jornal, a Tribuna da Imprensa e outros mais). Elas atraíam e fixavam o melhor do talento nacional, como luzes para pirilampos de todo o país. Pessoas brilhantes, de verve, criativas, capazes de gerar personagens para si mesmas. Peças de um museu que se estratifica e se mumifica.

As redações não eram ilhas nesse Rio encantador. Lá fora também exsudava a energia de um povo que queria crescer, sem que esse crescimento pudesse ser reduzido a uns tantos indicadores quantitativos. O combustível dessa vitalidade era a democracia, a confiança dos cidadãos em que, a despeito de vícios e desvios, a cada ano o balanço desse fazer, em meio a inevitáveis contradições e conflitos, era positivo.

Havia vibração no ar, captada pelos jornais, que transpiravam controvérsia, polêmica, paixão, amor e ódio, decência e miséria – vida, enfim. Suas principais páginas eram dedicadas àqueles temas sobre cuja definição pendem as verdadeiras decisões: as movimentações políticas, epicentro da vontade coletiva. Hoje, a pauta reduziu-se ao mínimo eu, ao umbigo do leitor, ao seu exclusivismo e narcisismo, ao acessório e superficial.

Não é por acaso que estão morrendo não apenas os dinossauros daquela época: o mundo contemporâneo da imprensa se corrói no cotidiano, fazendo os novos barões das letras irem buscar a razão de sua existência nos cofres de um banco estatal e não nas ruas, onde está a razão de ser da imprensa: o público.

Discussão

Um comentário sobre “A história na chapa quente (230)

  1. Baixado a maré e sentada a poeira os jornalistas se dividirão entre aqueles que se reúnem em sociedades secretas e aqueles que se lamentam em algum gueto, chancelando o cancro da corrupção, enquanto não perceberem que o jornalismo e ciência convergem para a tentativa de aprimoramento da sociedade, ao contrário do que pretende o demiurgo capitalismo. Pois notícia e público sempre existirão, enquanto existir sociedade….

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    Publicado por Luiz Mário | 5 de junho de 2017, 10:30

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