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Colonização, Ecologia, Estrangeiros, Floresta, Grandes Projetos, Minério, Multinacionais

Agenda Amazônica (9)

Ainda há esperança

para a Amazônia?

(Publicado na Agenda Amazônica nº 16, de dezembro de 2000)

A Amazônia começou o século com não mais do que meio por cento da sua paisagem original alterada pelo homem, algo como 15 mil quilômetros quadrados. A natureza era o elemento dominador. O homem, um detalhe. O grande massacre havia sido humano, com as matanças de índios, algumas delas motivadas pelo expansionismo do colonizador, outras sem motivo algum.

Um século depois, a área alterada passa de 15%, ultrapassando meio milhão de quilômetros quadrados. À razão da menor das densidades possíveis, significa que cinco bilhões de árvores foram colocadas abaixo, com intensidade maior – quase total – entre quatro décadas do período, de 1960 ao nosso atual 2000. Apenas uma fração dessa devastação vegetal teve aproveitamento econômico. E o aproveitamento dado foi o de menor valor relativo: a produção de madeira sólida.

Este foi o principal fato amazônico do século XX, que agora chega ao fim, junto com o segundo milênio depois de Cristo, na virada ocidental da folhinha do calendário. No início do século, a Amazônia encantou um dos mais brilhantes brasileiros dessa época, que a percorreu com a ciência de engenheiro, mas sem perder a inventividade do escritor.

Impressionado diante de uma natureza ainda por arrematar, arrebatadora, pelos rios que mudavam de curso e ilhas que se movimentavam, como se andassem, Euclides da Cunha percebeu que a Amazônia era o último capítulo do Gênesis, a ser escrito não por uma mão divina, mas, por delegação dela, pelo homem.

A selva selvaggia, aspra e forte deveria provocar no escritor paulista um livro tão ou mais grandioso do que Os Sertões, no qual os personagens principais não seriam homens, mas rios, árvores, solos, a terra invertendo a estrutura do romance para ser-lhe o ápice, não o preâmbulo.

Trabalho e escravização

É certo que a perspicácia já fizera Euclides observar que o seringueiro era o único ser que trabalhava para se escravizar. Quanto mais trabalhasse, mais necessidade de suprimento teria no barracão do seringalista, seu aviador, onde os preços de venda estavam hiper-inflacionados.

Maior, portanto, seria sua dívida, já que a borracha entregue recebia preços aviltados, impostos pelo comprador monopolista, monopólio esse baseado numa relação de inspiração e aparência medieval, por isso capaz de criar fantasias entre intérpretes de primeira viagem (e geralmente última, ainda mais em se tratando de acadêmicos).

Os homens já estavam se dando mal entre si, mas este não era um problema novo na história. A natureza, contudo, não só continuava a estabelecer seu império, como tinha condições de lamber, até sarar, as poucas feridas que já então haviam sido abertas em seu corpo.

A forma econômica de produzir na Amazônia era o extrativismo, sobrevivente às poucas tentativas de estabelecer uma empresa comercial na região, a mais notável no século XVIII, sob o iluminismo despótico do Marquês de Pombal.

O porta-voz, o intérprete, o abre-alas da natureza era o índio, em tendência decrescente, e o caboclo, em ascensão pela miscigenação. Suas lendas descreviam uma natureza não apenas prevalecente, mas mágica. Um cipó passava sem problemas de sua condição natural à função mágica e assumia uma feição antropomórfica, como se os deuses gregos tivessem ressuscitado em plena rain foirest e encontrassem nos nativos parceiros à altura.

Sua excelência, o petróleo

Essa fisionomia permaneceu relativamente intacta até a década de 1950. O mandonismo americano, sucedendo, em versão ampliada, ao império britânico de pré-guerras mundiais, pôs fim a essa equação em aberto que deslumbrara Euclides (antes que uma bala intrusa antecipasse o fim de seus dias). A Amazônia saía da seara da mitologia para ser incorporada ao circuito da mercadoria.

Qual era a primeira potencialmente apta? A resposta, àquela altura, era simples: petróleo. Não estava ali, afinal, a maior bacia terciária do planeta, onde se acumulam os hidrocarbonetos? Brotar óleo era uma questão estatística, proporcional à quantidade de perfurações.

Numa das primeiras, em Nova Olinda, no Amazonas, o óleo jorrou bonito. Mas foi um jorro precoce. Logo se amofinou. Sem boas rochas armazenadoras e pressão adequada, ele migrava horizontalmente, mas não esguichava para a superfície. A regra da probabilidade teria que ser mais demorada.

Com a tecnologia mais moderna de então, os americanos não demoraram a concluir que petróleo era assunto para muito tempo depois, quando as técnicas de prospecção e extração fossem aperfeiçoadas. O melhor, a curto prazo, estava atrás dessas formações geológicas mais recentes, nos espinhaços de pré-cambriano, de rica mineralização.

Minério: principal personagem

Soou como música na antessala do gigantismo dos EUA, suas usinas siderúrgicas, a informação de que um caboclo do Amapá tinha encontrado uma pedra preta valiosa, o manganês, a maior parte do qual as indústrias americanas importavam da África (já que o acesso aos maiores depósitos, da União Soviética, estavam bloqueados pela guerra fria).

A segunda maior das siderúrgicas, a Bethlehem Steel, saiu na frente na abertura do capítulo final da inserção mundial da Amazônia, explorando a jazida de Serra do Navio, que há dois anos chegou à sua exaustão, após quatro décadas de lavra intensa, voraz. A primeira das gigantes (ou paquidermes), a United States Steel, se arranchou em seguida, do outro lado do rio, em Carajás.

Mas se era para avançar por sobre a área de inundação do Amazonas e alcançar suas terras altas, por que não inundar essa depressão e chegar aos alvos por água? Essa era a consequência lógica do plano dos grandes lagos amazônicos, referendado por Herman Kahn, o homem de QI mais alto, e seu Instituto Hudson, que costuraram ideias de ligações isoladas apresentadas por terceiros.

O maior de todos, em Óbidos, o trecho mais estreito do Amazonas (com dois quilômetros de largura), inundaria Santarém e Manaus, entre várias cidades da bacia, mas permitiria gerar 100 milhões de kw (12 Tucuruís completas), através de uma barragem de baixa queda.

Mas isso era jogo intelectual. A espinha dorsal do projeto eram as terras firmes. Essa era, até então, a parte ignota da Amazônia. Só as populações mais primitivas haviam enveredado por essas paragens, ou aqueles grupos indígenas tocados da beira do rio pela perseguição dos colonos europeus.

Estes, se no litoral viviam arranhando praia, na Amazônia só iam até onde pudessem rolar madeira até o primeiro curso d’água. Era uma limitação ditada tanto pelo mercado quanto pela tecnologia. Da margem não se ia além de uns 40/50 quilômetros. E, pelo rio, até o seu limite razoavelmente navegável.

As terríveis estradas

A partir da Belém-Brasília, na vertente de uma diretriz interna (ainda a saga da “corrida ao oeste”), e da Transamazônica, que incorporou um princípio geopolítico (“integrar para não entregar”), o elemento novo – e irremediável – era a ocupação da terra firme amazônica por rodovia, uma veia artificial rasgada no centro da região para ser um foco indiscriminado de problemas e um ponto de atração de gente e sonhos à maneira dos antigos mata-moscas. A abertura dessa fronteira não foi feita para realizar um projeto de descoberta do novo e sua incorporação na devida medida e capacidade dos seus recursos. Era um projeto negativo, contra algo.

No âmbito interno, uma resposta ao secular problema (ou manipulação) da seca no Nordeste, de braço dado com o latifúndio dominante na Zona da Mata, a terra rica e, desde sempre, controlada pelos mesmos usineiros (que receitam para qualquer anomia social o remédio da migração compulsória, acalentada por mitologias sebastianistas ou de outro quilate, como a bandeira verde), com o mesmo propósito: mandar a riqueza para os associados de além-mar, onde também estabelecem seu segundo (na verdade, o primeiro) domicílio, físico e mental.

No plano externo, estradas de penetração no desconhecido das florestas altas eram uma afirmação da soberania nacional contra a cobiça internacional, sempre mais alerta do que a UDN dos nossos antigos bacharéis (que seus discípulos, os udenistas de espada, se encarregaram de arquivar).

A barbárie contra as florestas

Os piratas de contador geiger (hoje, armados de GPS) podiam se aproveitar de haver tantas matas para se ocultar e tantos habitantes rudes para manipular. A imunização contra eles consistiria em substituir floresta por pastagem, estrada, roças, cidades, hidrelétricas, enfim, impor a marca do homem sobre a da natureza, marca estandardizada.

O que perdêssemos seria compensado por continuarmos a ser brasileiros, cada um dos (hoje 17 milhões) habitantes amazônicos e os 5 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia para efeito administrativo e dessa panaceia duvidosa (quando não letal) conhecida como incentivos fiscais.

Por isso, ninguém se importava quando milhares de árvores eram derrubadas e queimadas para, no lugar, ser plantado capim, alimento para um incerto boi depois, de uma incerta atividade produtiva no futuro sem futuro (ou, como se diria a seguir, sem sustentabilidade), cíclica, rotativa.

Afinal, a terra tinha tanto mais valor quanto mais nua estivesse (daí o conceito operacional do VTN – Valor da Terra Nua), destituída de sua cobertura original para a formação de benfeitorias, sem as quais ninguém mais podia ser detentor do imóvel (já então com valor de troca e não mais apenas de uso, como a forma prevalecente sob o extrativismo vegetal).

Por força dessa lógica da desinteligência, garantimos nosso lugar na história universal, não deste século apenas, mas de todos os séculos, passados e (provavelmente, à falta de matéria prima com a mesma abundância) futuros, como o povo que mais destruiu floresta em tal espaço de século (quatro décadas representativas).

Os que sobre nós escreverem a maior distância no tempo dificilmente conseguirão entender tal irracionalidade. Esse, aliás, é o nó górdio amazônico. Ou esta é uma região igual às outras do planeta, ou há nela um componente diferenciador, ao qual demos o nome de Amazônia a partir de uma primeva fantasia espanhola do final do século XV (pulando para o XVI).

É a mitologia das guerreiras amazonas, que o primeiro colonizador europeu aqui chegado (antes de Cabral) não viu, mas quis ver (por falar nisso, uma das tradições da produção intelectual sobre a Amazônia até hoje, ao menos a produzida no Ocidente).

Corpo fechado e frágil

Esse especial “organismo harmônico” que nos surpreende é produto de uma rara sinergia entre água, sol e vegetais, em circuito absolutamente fechado, o solo sendo uma circunstância na maior parcela territorial. Esse conjunto não tem espaço para o homem, mais intruso do que na maioria dos outros lugares desta Terra azulada.

O homem até pode ser admitido no cenário, mas pedindo licença, tirando os sapatos, jogando o cigarro lá fora, aceitando as regras do jogo. Isso não quer dizer que a Amazônia precisa ser deixada na redoma, que deve virar museu ou santuário. Mas que a economia principal é a da natureza. E é exatamente ela que devemos aprender para usá-la inteligentemente, com ganhos.

A dedução lógica desse pressuposto é de que a ciência tem uma importância decisiva, essencial na Amazônia. É verdade que inexiste uma ciência em abstrato, altruísta, a serviço de uma humanidade genérica. Mas é na ciência que a margem de autonomia é maior do que nos outros ramos de atuação do homem (abaixo da arte apenas).

Cegueira mental

A ciência é quase sempre utilitária, tem um roteiro prévio e pode servir ao anti-humano (de que o nazismo é o exemplo mais assustador). Mas não sempre. Principalmente quando o homem está ocupado com outras coisas, ela pode ter um papel decisivo.

Foi o que aconteceu no pós-guerra com o Instituto da Hileia Amazônica. Depois que o senador mineiro (e ex-presidente da república) Arthur Bernardes liderou uma campanha contra o projeto (poderíamos dizer, à maneira de Émile Zola: ah, os nossos compatriotas de boa vontade), ele passou a ser visto como a quintessência do entreguismo.

Mas qual iniciativa seria pró-imperialista depois da Segunda Guerra Mundial sem um patrocínio, apoio ou simpatia dos Estados Unidos? E ainda mais: enfrentando a aversão dos americanos? Pois a Hileia, que primeiro seria nacional e se internacionalizou em busca da solidariedade dos homens de boa vontade, concebido por brasileiros, foi torpedeada por Tio Sam, nos bastidores e explicitamente.

No interregno entre o alívio mundial com a derrota do Eixo e o desencadeamento da guerra fria, a Unesco, a bandeira científica da ONU, era quase um campo neutro, ou independente o suficiente para não servir de biombo a um mero expansionismo econômico ou cultural.

A bitola de um nacionalismo estreito, incapaz de abarcar uma nação tão multifacetada como o Brasil, e sempre deixando de fora uma região exageradamente grande (em todos os sentidos) como a Amazônia, matou no nascedouro uma ideia que tinha sementes suficientemente boas para, ao menos, ser testada.

Ainda sobreviveram germes dessa necessidade durante o período (1953-66) em que a SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, antecessora da Sudam) inaugurava o planejamento regional no Brasil com uma carta de crédito ou uma moratória: antes de dar o toque de avançar, com agudos nacionalistas ante a iminente ameaça da cobiça internacional, estudar, revelar e valorizar.

A criação diabólica

Mas teve pouco tempo e fez pouco. Logo, bulldozers avançaram sob a frágil floresta da terra firme, esticando espinhas de peixe por onde passavam, enquanto (1971-73) o modelo de ocupação foi a colonização oficial dirigida, ou rasgando extensos descampados quando a parceria se fez com o grande capital. Assim, fechando a porteira do que se desenhava como o Éden fundiário nacional, onde, por força do seu mero deslocamento espacial, o antigo parceiro ou arrendatário se tornava proprietário rural.

Os índices de desmatamento recuaram daquelas marcas dantescas da década de 1980, mas não recuaram tanto, nem recuaram para sempre. Não só não há uma  crença na sua positividade, como persiste uma desconfiança arraigada, de que o controle ou a limitação da atividade produtiva, tal como ela é entendida além-Amazônia, é um cavalo de Tróia. Do seu estômago brotarão gregos inimigos na calada da noite, abocanhando a maior parte deste país, internacionalizando, quem sabe, depois do desastroso Plano Colômbia de Clinton, americanizando-o.

Desconfia-se tanto da ecologia neste final de século quanto se desconfiava de antropólogos no século passado (e ainda em meados deste). Muitos antropólogos nada mais eram do que pracistas dos seus patrões imperialistas em terras ultramarinas. Mas a antropologia forneceu ao homem um espelho reflexivo e uma bússola com a qual pôde sair de círculos concêntricos limitadores, empobrecedores.

A ecologia também veio para ficar, a despeito de todas as bruxarias, manipulações e velhacarias, porque é uma das válvulas de segurança de um homem que atingiu o poder de destruir seu próprio universo, ou de sair de uma exploração irracional para uma nova idade das cavernas.

Muito flibusteiro pode se escorar em argumentos ecológicos para vender seu peixe ou saquear o pescado alheio. Mas ele não será imobilizado com Sivams (de 1,4 bilhão de dólares, só pra dar partida no projeto) ou exércitos, nem com uma ladainha desenvolvimentista anacrônica. Contra ele, a melhor força será a do conhecimento e da informação.

Ninguém nos fará maior mal na Amazônia se soubermos sobre ela mais do que ele. Tão bem armados assim, podemos enfrentar qualquer auditório, nos entestar em qualquer confronto e nos abrir à cooperação sem o risco de sermos usado, servindo de instrumento a efeito multiplicador que será exercido lá fora.

Hoje ainda somos plenamente território brasileiro e integralmente cidadãos brasileiros. Mas estamos mais ricos? Conseguimos diminuir a distância que cada vez mais nos separa dos brasileiros mais ricos (nem cabe falar dos estrangeiros mais e mais ricos)? Temos o domínio da nossa vontade (ou, por outra, temos vontade)? Um ciclo de grandes projetos só resultou em empobrecimento relativo, vis-à-vis nossos supostos parceiros. No entanto, outro ciclo já começa, com cobre, caulim e soja, prometendo as mesmas coisas, carregando as mesmas origens e os mesmos defeitos.

Num século em que houve confiança quase cega na ciência e fascínio por fantásticos incrementos de produção e produtividade, capazes de sustentar consumismo desenfreado, a Amazônia começou a se descaracterizar e a se apresentar como um problema de grandeza mundial. Num século que está começando, demarcado pela consciência de que a Terra se tornou suscetível ao ímpeto destruidor do seu habitante mais nobre (e mais devastador), talvez a ecologia deixe de ser considerada uma ciência alquímica ou um golpe de ilusionismo para assumir seu verdadeiro papel, de instrumento de aproximação do homem com a natureza, de harmonia nas suas relações produtivas, centralizadas na sensibilidade, no saber, na informação e na inteligência. Se for assim, ainda haverá esperanças para a Amazônia. E, se redivivo nesta passagem milenar, Euclides da Cunha talvez voltasse acreditar que esta última página do Gênesis quem vai escrever – e bem – será mesmo o homem.

Discussão

Um comentário sobre “Agenda Amazônica (9)

  1. Respondendo a sua pergunta. Há sim futuro bonito para a região. Entretanto, este futuro só pode ser construído se tivermos gente e instituições qualificadas para fazer frente ao desafio. Na situação atual, o nosso capital humano é muito limitado e concentrado nas grandes cidades e, por conseguinte, nossas instituições são caras, improdutivas e voltadas para elas mesmas. Romper este ciclo requer gente de visão e coragem. Se olharmos o que produzem as nossas lideranças políticas e os seus seguidores na internet, as perspectivas de transformação não são nada animadoras. Quem sabe a próxima geração será melhor do que a nossa…

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    Publicado por Jose Silva | 19 de agosto de 2017, 11:07

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