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Justiça, Política

O tabuleiro do STF

Alex Fiúza de Mello

Muitos dos principais enfrentamentos da “guerra brasileira” em curso – expressos, por exemplo, nas disputas entre as (assim denominadas) correntes “lavajista” e “garantista” – são decididos no “campo de batalha” do Supremo Tribunal Federal. Este, de Corte Constitucional, foi transformado em parte orgânica e comprometida do embate, assumindo, internamente, a cultura do “ativismo político”, em total desacordo com seus desígnios e prerrogativas consagrados na Carta Magna.

Trata-se de uma disfuncionalidade em grau inédito na história da instituição, que chega a ameaçar, inclusive, um dos fundamentos mais relevantes da democracia moderna, celebrizado desde o “Espírito das Leis”, de Montesquieu: a separação dos poderes.

É para lá que, de forma transviada, quase sempre convergem as querelas das forças em conflito, com seus recursos “em última instância”, na esperança de reversão de resultados políticos adversos, próprios do jogo democrático, jamais, porém, assimilados com normalidade pelos protagonistas da contenda ou devidamente esgotados na arena especificamente concebida para tal finalidade: o Parlamento.

Sim, no Brasil de hoje, ceifado por antagonismos passionais e irreconciliáveis, o Supremo Tribunal Federal foi transmutado em ringue de “luta livre” (para tudo e todos), de deletéria influência corporativa e partidária, maculadas as suas insubstituíveis e nobres funções constitucionais – que exigem caráter de isenção e ética de convicção –, colocando (neste caso, sim!) a democracia “em vertigem”, com desmedido prejuízo à república e à justiça.

Conforme a presidência de ocasião – com o seu poder de deliberação sobre os conteúdos prioritários e o ritmo das pautas plenárias –, o STF tende ora para um “lado”, ora para “outro”, ao sabor das preferências e compromissos ideológicos (e/ou corporativos) de seus titulares.

Assim foi à época do ministro Joaquim Barbosa – cuja atuação foi determinante na condução do célebre processo do “Mensalão” (que inaugurou um ciclo de penalizações aos crimes de “colarinho branco”) –, assim tem sido com o desempenho do atual presidente, o ministro Dias Toffoli, em cujo mandato ocorreram os maiores reveses da Operação Lava Jato (inclusive a reversão da prisão em segunda instância).

Houve retrocessos significativos na luta contra a corrupção no país – ao ponto da OCDE ter, recentemente, externado preocupação com decisões tomadas pela direção do Tribunal, como na grave, monocrática e ilegal suspensão das investigações do COAF – a muito custo revertida.

Na ausência de solidez institucional – padrões jurisprudenciais consolidados e colegialidade pactuada – e, por consequência, ante a cristalização de uma atmosfera de instabilidade jurídica que se perpetua no tempo, o comando da Suprema Corte passou a representar – impropriamente – o fiel da balança no jogo da acirrada correlação de forças políticas em disputa.

Se o “lavajatismo” traduz um posicionamento favorável ao combate à corrupção e à impunidade, inscritas nas tradicionais práticas do patrimonialismo, o “garantismo”, a seu turno – e para além da defesa dos direitos fundamentais do indivíduo –, descamba para o protecionismo dos interesses corporativos e oligárquicos dos habituais “donos do poder”.

A disputa transcorre com movimentos contínuos e alternados, de cada lado, argutamente planejados, à semelhança das estratégias e táticas típicas do posicionamento de peças de um jogo de xadrez – inclusive com o sacrifício de algumas, se for o caso, em função de vantagens em “lances” ulteriores.

Ocorre que as perspectivas no tabuleiro do jogo, se a curto prazo – enquanto perdura o mandato de Dias Toffoli – favorecem os sequazes do “garantismo”, a médio e longo prazo sinalizam para uma inclinação em favor dos adeptos do “lavajatismo”, uma vez que o ministro Luiz Fux assume a presidência do STF a partir de setembro, sucedido – desde que mantida a tradição da Casa – por Rosa Weber, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin – todos “peças” comprometidas com o combate à criminalidade, como demonstram suas atuações não apenas no plenário do Tribunal, quanto nas sessões mais reduzidas de suas respectivas Turmas.

Cabe ainda o vislumbre de que essa nova fase de governança do STF coincidirá com o momento da troca de comando das duas casas do Congresso Nacional. Também com a aproximação das vindouras eleições presidenciais e, mesmo, com o início do novo mandato do futuro Chefe do Executivo,

Será um período em que – pela combinação e cruzamento dos processos em fluxo – as tensões políticas tendem a se acirrar e a respingar, como de regra – ao alvedrio dos desatinos –, na Suprema Corte, que continuará a desempenhar, assim, um papel destacado e decisivo – ainda que com temperos heréticos – nos destinos do país – pro “bem” ou pro “mal”.

Não é ao acaso, a propósito, que, em plena efervescência do chess match, fervilhem rumores de iminente rompimento do tradicional acordo entre pares quanto aos critérios de revezamento na presidência do Tribunal, refletindo uma inquietação, por parte de alguns, à prenunciada posse do ministro Fux – candidato “natural” pelos parâmetros vigentes –,  sintomaticamente reputada como ameaça ao atual establishment.

Disso se conclui que, como tendência, os partidários do conservadorismo patrimonialista (de “direita” ou de “esquerda”) ainda tentarão aproveitar os últimos meses de Dias Toffoli no poder para fazer avançar o que for possível na institucionalização de seus interesses “garantistas”. Ao mesmo tempo, já se articulam para enfrentar os “tempos adversos” que se anunciam, imaginando os lances possíveis de resistência às previsíveis impulsões de contra-ataque por parte dos adversários – que assumirão o protagonismo do “jogo”.

Assim se prolongará, indefinidamente, as “batalhas” dessa interminável “guerra de posição” e, por consequência, o momento decisivo do xeque mate – adiado sine die.

Discussão

14 comentários sobre “O tabuleiro do STF

  1. Lucio o único garantista do stf é Celso de Mello. Outros o são por conveniência e ideologia. Mas eu queria um dia perguntar para Celso como seria viver em um mundo em que o direito penal fosse abolido. Porque na prática o garantismo representa a abolição do direito de punir, independente de lavajato ou não. Pense no garantismo num país distante que não Brasil. Como seria essa sociedade?

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    Publicado por jjss555js | 14 de fevereiro de 2020, 06:31
    • Você não poderia continuar tentando propor uma resposta para a sua pertinente pergunta?

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      Publicado por Lúcio Flávio Pinto | 14 de fevereiro de 2020, 08:02
    • Do saudoso Dr. Saulo Ramos sobre o Min. Celso de Mello, no livro O Código da Vida:

      “Terminado seu mandato na Presidência da República, Sarney resolveu candidatar-se a Senador. O PMDB — Partido do Movimento Democrático Brasileiro — negou-lhe a legenda no Maranhão. Candidatou-se pelo Amapá. Houve impugnações fundadas em questão de domicílio, e o caso acabou no Supremo Tribunal Federal.

      Naquele momento, não sei por que, a Suprema Corte estava em meio recesso, e o Ministro Celso de Mello, meu ex-secretário na Consultoria Geral da República, me telefonou:

      — O processo do Presidente será distribuído amanhã. Em Brasília, somente estão por aqui dois ministros: o Marco Aurélio de Mello e eu. Tenho receio de que caia com ele, primo do Presidente Collor. Não sei como vai considerar a questão.

      — O Presidente tem muita fé em Deus. Tudo vai sair bem, mesmo porque a tese jurídica da defesa do Sarney está absolutamente correta.

      Celso de Mello concordou plenamente com a observação, acrescentando ser indiscutível a matéria de fato, isto é, a transferência do domicílio eleitoral no prazo da lei.

      O advogado de Sarney era o Dr. José Guilherme Vilela, ótimo profissional. Fez excelente trabalho e demonstrou a simplicidade da questão: Sarney havia transferido seu domicílio eleitoral no prazo da lei. Simples. O que há para discutir? É público e notório que ele é do Maranhão! Ora, também era público e notório que ele morava em Brasília, onde exercera o cargo de Senador e, nos últimos cinco anos, o de Presidente da República. Desde a faculdade de Direito, a gente aprende que não se pode confundir o domicílio civil com o domicílio eleitoral. E a Constituição de 88, ainda grande desconhecida (como até hoje), não estabelecia nenhum prazo para mudança de domicílio.

      O sistema de sorteio do Supremo fez o processo cair com o Ministro Marco Aurélio, que, no mesmo dia, concedeu medida liminar, mantendo a candidatura de Sarney pelo Amapá.

      Veio o dia do julgamento do mérito pelo plenário. Sarney ganhou, mas o último a votar foi o Ministro Celso de Mello, que votou pela cassação da candidatura do Sarney.

      Deus do céu! O que deu no garoto? Estava preocupado com a distribuição do processo para a apreciação da liminar, afirmando que a concederia em favor da tese de Sarney, e, agora, no mérito, vota contra e fica vencido no plenário. O que aconteceu? Não teve sequer a gentileza, ou habilidade, de dar-se por impedido. Votou contra o Presidente que o nomeara, depois de ter demonstrado grande preocupação com a hipótese de Marco Aurélio ser o relator.

      Apressou-se ele próprio a me telefonar, explicando:

      — Doutor Saulo, o senhor deve ter estranhado o meu voto no caso do Presidente.

      — Claro! O que deu em você?

      — É que a Folha de S.Paulo, na véspera da votação, noticiou a afirmação de que o Presidente Sarney tinha os votos certos dos ministros que enumerou e citou meu nome como um deles. Quando chegou minha vez de votar, o Presidente já estava vitorioso pelo número de votos a seu favor. Não precisava mais do meu. Votei contra para desmentir a Folha de S. Paulo. Mas fique tranqüilo. Se meu voto fosse decisivo, eu teria votado a favor do Presidente.

      Não acreditei no que estava ouvindo. Recusei-me a engolir e perguntei:

      — Espere um pouco. Deixe-me ver se compreendi bem. Você votou contra o Sarney porque a Folha de S. Paulo noticiou que você votaria a favor?

      — Sim.

      — E se o Sarney já não houvesse ganhado, quando chegou sua vez de votar, você, nesse caso, votaria a favor dele?

      — Exatamente. O senhor entendeu?

      — Entendi. Entendi que você é um juiz de merda! Bati o telefone e nunca mais falei com ele.”

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      Publicado por Victor | 14 de fevereiro de 2020, 09:19
  2. Com todo o respeito pelo artigo do professor Fiúza,reitor da minha época de aluno da UFPA(um excelente reitor por sinal), tenho muitas convergências sobre este escrito,mas não concordo com relação à crítica sobre o garantismo.Seguir os preceitos da Constituição é imprescindível para o fortalecimento do próprio Estado democrático de direito. Reduzir isso a uma avaliação precipitada de “proteção dos interesses patrimonialistas” é entrar no jogo da polarização das disputas pela hegemonia do pensamento político nacional,que tanto mal faz ao nossos País. Há até uma enorme contradição nesse texto a respeito da judicialização da política partidária, que de fato não pode se imiscuir nas decisões do judiciário.Vamos exemplificar: a decisão do STF sobre a prisão em segunda instância,ao meu ver, foi acertada,porque justamente apenas ratificou o que já está disposto de forma cristalina na Carta de 1988.Sou a favor da prisão após a condenação em segunda instância,entretanto, não cabe ao STF efetivar essa aspiração que todos temos pelo combate à impunidade.Cabe ao Legislativo resolver essa situação,através dos artifícios legais e constitucionais existentes no ordenamento jurídico brasileiro(PEC,reformulação do Código penal etc…).Será por esse caminho que acertadamente chegaremos com solidez à condenação dos dilapidadores do erário público.Para ratificar,o “garantismo” não pode,de forma alguma,ser equiparado a uma aquiescência com as ações nefastas desses predadores dos nossos recursos patrimoniais.
    Tenha um bom dia,Lúcio.

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    Publicado por rafael gomes araújo | 14 de fevereiro de 2020, 09:29
    • Caro Rafael,
      Se você ler com atenção, perceberá que, entre travessões, reconheço que o, assim denominado, “garantismo” envolve, sim (o que é positivo!), preocupações com a garantia dos direitos fundamentais do indivíduo. O fato é que, PARA ALÉM dessa premissa, alguns ministros (excluo o Celso de Melo) a têm utilizado – esta é a minha avaliação! – como álibi para posicionamentos que nada têm de republicano, mas visam, tão somente, à impunidade de poderosos corruptos. Outrossim, se a interpretação da cláusula da Constituição a respeito da matéria fosse “óbvia”, não teria durado, por tempo muito superior, a hermenêutica em contrário à ultima decisão por maioria. Pense nisso!
      Por fim, é claro – e aqui eu concordo com você – que cabe ao Parlamento, de uma vez por todas, sanar essa dúvida, em função do estabelecimento de segurança jurídica. Contudo, a guinada – a palavra é justamente esta – do STF foi, no mínimo, suspeita, a considerar que, nas votações anteriores, tanto Gilmar Mendes quanto Toffoli defenderam o contrário, Ou seja, por influência dos fatos (Mensalão e Lava Jato), juízes mudam oportunisticamente de posição. Logo, o que se atribuir a esse tipo de comportamento? Como vc pode perceber, sem uma interpretação “política” dos fatos – e não apenas técnica formal – não se deslinda as motivações reais que movem os atores nas instituições – e a “perversão” de suas atuações face às responsabilidades que deveriam exercer em favor do interesse público.

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      Publicado por Alex Fiúza de Mello | 14 de fevereiro de 2020, 10:36
  3. têm a delinquência do capitalismo
    lavajistas e garantistas em comum
    sob sua ordem operam o teatrismo
    de monstros sendo o stf, mais um!

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    Publicado por felipe puxirum | 14 de fevereiro de 2020, 10:08
  4. Sim,professor. Concordo com grande parte da sua resposta, mas mantenho a divergência em relação à prisão em segunda instância. Toda a barafunda hermenêutica foi insensata. Ainda entendo que a Constituição é muito clara nesse sentido,não há muito sobre o que se debater. Desde já agradeço a sua atenção à minha humilde análise.

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    Publicado por Rafael Araújo | 14 de fevereiro de 2020, 15:31
  5. O Saulo Ramos é (em sentido figurado) o Armando Trampa do Celso de Mello (episódio Paulo Maranhão. Que respondeu, Mello enfiou a viola no saco). Não vejo “garantismo” nenhum. Vejo apenas irresponsabilidade e leviandade. E nada a ver com prisão em 2ª instância, incabível não termos da CF. Na ADO 26/DF, Celso como relator atropelou o princípio da reserva de lei previsto no art. 5º, inciso XXXIX da CF. Um professor de constitucional (não foi o Canotilho) me disse que nenhum constitucionalista no mundo concordará com tal decisão. O Gilmar deu uma aula aqui (desgraçadamente perdi, eu ia encará-lo) e segundo um colega, que espero não me tenha mentido, justificou o voto dizendo que ia discordar do relator, mas como o Celso disse que estavam assassinando muitos homossexuais, resolveu acompanhá-lo…Nunca pensei que concordaria com um voto do Lewandouski, pois aconteceu. Ele estava certo… no MS
    26603/DF, ( Alex lê as decisões para ver o tal “garantismo”) o mesmo Celso diz que o Supremo, como intérprete da Constituição, pode muito bem, quando e como quiser, alterá-la!!!!!.Não precisa ter sido aluno do Bitar, do Naif, de qualquer monitor de ensino para entender que isso é rematada estupidez! O diabo e que eles agem assim mesmo.
    Acho que Celso de Mello, um péssimo juiz na minha opinião, se esgueira com frases pomposas, longas, aparentemente bonitas entre os preceitos da Constituição para despejar suas frustrações, crenças e traumas, entre estes, talvez, talvez – não sei de suas intimidades – o maior deles o de ter sido exposto em praça pública pelo impiedoso Saulo Ramos como um juiz simplesmente volúvel. Para dizer o menos.

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    Publicado por Alcides | 14 de fevereiro de 2020, 21:06

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