Anteontem, quando, no banheiro, me virei na direção da porta, dei de frente com uma mulher morena, cabelos crespos, pretos, ondulados, baixa, enfumaçada e vaporosa como toda visagem que se preza. Ficou escassos segundos e foi embora, acho que voando, ou deslizando com sua túnica branca onde sapato deveria haver. Quando quase nos tocamos, ao me virar; me espantei, soltei uma exclamação vigorosa: “Ai, meu Deus”,
A amiga a quem contei o acontecido (ou “desacontecido”, à Lewis Carroll) questionou imediatamente: “Deus diante de um ateu?” Devolvi de pronto, sem raciocinar (raro): “Não, diante de quem o considera na sua vida”.
Era a primeira vez em muitos anos que eu clamava por Deus. Nunca fui usuário do constante “Graças a Deus”, que transfere representação e abdica ao livre arbítrio. Invoquei-o por estar assustado, com medo, inseguro diante da criatura de fumaça, o mais impressionante dos seres com que venho topando. Mas, desde algum tempo, ao começo da estranha, inédita série, não a única, nem rara. Ao usar o nome do Senhor, não agi em vão, por comodismo, covardia ou oportunismo – e falsa crença ou firme crendice.
Foi para merecer sua soberana e superior aprovação. Queria tempo e circunstância para entender quem sou agora, aos 74 anos, com muitos acidentes e conflitos no corpo e na alma. Reconhecendo minhas fraquezas e limitações, com plena aceitação dos meus erros, sem convencimento dos meus acertos, penetrado por um sentimento de culpa diante de tudo o que ainda vejo e faço sem esgotar o que a vida, meus companheiros de planeta, a própria Terra e uma fonte invisível de luminosidade, que brilha, sem se explicar, e escurece, sem intimidar. É, apenas é – o ser.
Ai, meu Deus!
Agora você é um “ateu-graças-a-Deus”.
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“O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde.”
Millôr Fernandes
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E a visagem?
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Parece ter ido atrás de outro cliente.
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Quem sabe, na próxima que ela apareça sem a túnica.
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É a primeira vez que isso acontece? Sério que era uma visagem?
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Não deu tempo para conferir. Sumiu rápido. Mas que foi assim como descrevi, foi. O “ai, meu Deus” foi genuíno. Não foi a primeira vez. Vem ocorrendo nas últimas semanas. Mas foi a mais forte.
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Agora, só precisa acreditar na Deusa e chamar por ela. Acho que a visagem era feminista. Afinal só podia ser assim pra aparecer pra ti. Se eu te contar que já vi uma assim, quando criança, em Santarém. Como descreves. Me embalava a rede. Morria de medo. Mas ainda não existia Deus pra mm, chamei pela mamãe. Da próxima vez pergunta o que ela quer. É estranho que apareça no banheiro. No quarto é mais confortável.
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Fator meramente circunstancial. No meu entendimento, uma projeção inadvertida e indesejada do seu casual autor: eu. Não creio que em um caso assim (no meu caso apenas) haja diálogo. O que precisa haver me parece ser reflexão profunda a respeito.
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