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Índios, Fronteira, Garimpo

A guerra aos yanomami

Carolina MoraesJoão Gabriel / Folha de S. Paulo

Yanomamis não morriam de fome; agora, garimpo mata meu povo, diz Davi Kopenawa

território yanomami vivia uma crise em 1989, quando o Masp (Museu de Arte de São Paulo) abriu a exposição “Planeta Terra”. A mostra trazia fotografias e reportagens que retratavam a deterioração das condições de vida dos indígenas em meio ao avanço de serviços de voo para garimpeiros e à escalada de casos de malária.

Davi Kopenawa, 66, era o homenageado da mostra —ele havia recebido naquele ano um prêmio das Nações Unidas por proteger seus parentes. Três décadas depois e com um território hoje demarcado, o xamã, uma das maiores lideranças de seu povo, diz que o que se vive hoje é ainda mais grave.

“Em 2020, começaram a aumentar as invasões na Terra Yanomami. A Associação Hutukara fazia documentos avisando sobre o aumento de garimpeiros, que aumentou muito. A gente pedia para a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], para retirarem [eles da terra], mas não fizeram nada. E aumentou ainda mais”, afirma ele à Folha.

A crise dos yanomamis escalou no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), com a explosão do garimpo na região, e recebeu novamente os holofotes com a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao local.

O Ministério da Saúde decretou situação de emergência na saúde no local após, durante o governo Bolsonaro, 570 crianças e outras centenas serem diagnosticadas com desnutrição, pneumonia e malária, sintomas que são reflexo justamente da atividade ilegal de exploração do solo. Os números foram levantados pela plataforma de jornalismo amazônico Sumaúma, com base em dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação (LAI).

O cenário do presente contrasta com as lembranças que Kopenawa traz de sua infância na floresta.

“Os yanomamis nunca morreram de fome. Estou aqui, tenho 66 anos e quando era pequeno, ninguém morria de fome. Agora o garimpo está matando o meu povo e também os parentes Munduruku e Caiapó. Quando os indígenas ficam doentes, eles não conseguem trabalhar [na roça] ou caçar”, diz.

Uma infância permeada pelos efeitos do desmatamento e dos invasores também é algo distante do que o xamã viveu quando era criança.

Sua primeira memória sobre o garimpo, segundo ele, é de 1986, quando “milhares de invasores chegaram” às aldeias do território que, até então, ainda não havia sido demarcado.

Ele reclama que, tal qual nos últimos anos, os diversos alertas feitos por seu povo acerca das doenças e das violências consequentes da atuação de garimpeiros foram ignorados por autoridades.

“Foram anos de muita luta, uma luta muito dura, junto com os outros povos do Brasil. Saí do meu país, fui à ONU para conseguir apoio, enquanto meus parentes estavam adoecendo com malária, gripe e [outras] doenças que os invasores levaram”, diz.

“Em 1992, nós conseguimos [a demarcação da terra]. Mas agora estamos aqui de novo, em luta de novo, em uma situação muito difícil. Mas vamos conseguir, outra vez, salvar o povo e o território Yanomami”, continua. “A vida das crianças é mais valiosa do que o ouro”, afirma.

Para Kopenawa, a responsabilidade sobre a situação é do Estado brasileiro, que durante os quatro anos de governo Bolsonaro negligenciou seu dever de proteger as áreas de proteção.

A Associação Hutukara —da qual seu filho Dário Kopenawa é vice-presidente— vem denunciando o aumento nas invasões e, sobretudo, a deterioração das condições de saúde nas aldeias.

Em 2022, por exemplo, Junior Yanomami, presidente da entidade, denunciou o desaparecimento de uma aldeia. Depois, à Folha, ele afirmou que os indígenas que nela viviam haviam sido cooptados pelo garimpo.

Relatórios de operações militares de 2019 obtidos pela Folha mostram que os garimpeiros usavam ouro não só para comprar a lealdade dos yanomamis, mas inclusive para pagar propina a militares, em troca de informações vazadas ou permissão para transitar com drogas e minérios ilegais dentro da terra indígena.

“O governo que ficou quatro anos foi contra minha terra, meu povo. Deixou isso acontecer. O garimpo não estava sozinho, ele estava junto com as autoridades”, diz o xamã.

Para Kopenawa, os indígenas são os primeiros, mas não os únicos impactados pelos efeitos da ação externa.

Para ele, porém, mais cedo ou mais tarde a destruição da floresta fará do não indígena também uma vítima —e a barreira de resistência contra isso é, justamente, a atuação dos povos em defesa do meio ambiente.

“Quem está criando esses problemas é o capitalismo. Não é só indígena que vai morrer. A floresta vai morrer, os rios vão ficar sujos e as cidades vão começar a piorar, daqui pra frente. Agora, vocês [da cidade] ainda estão protegidos, mas porque nós ainda estamos vivos”, diz.

O avanço do garimpo, a mudança climática —que ele chama de “vingança do mundo”— e a chegada do coronavírus foram eventos com os quais Kopenawa conta ter sonhado. “Eu sonho porque sou xamã e pajé. Nós sonhamos quando está acontecendo alguma coisa longe, os sonhos chegam enquanto a gente dorme”, diz.

“Os sonhos contam para mim quando a doença está vindo com os invasores que chegam nas comunidades.”

E para o xamã, a maior crueldade é aquela cometida justamente contra aqueles que têm menos formas de se defender —muitos, que nem sequer têm consciência do fenômeno que os faz vítimas.

Meu comentário

Tenho o maior respeito por David Kopenawa, que conheci em Paris, em 1990, na sessão sobre a Amazônia do Tribunal Permanente dos Povos, antigo Tribunal Bertrand Russell. Na ocasião, ele apresentou um texto, que publico a seguir. Passados tantos anos, as queixas são as mesmas. Indicando que o tratamento contra os yanomami, o mesmo. Ora mais graves, agora como nunca. Ora menos explícito e agressivo.

Dois anos depois da sessão do tribunal e da mensagem de David, o presidente Fernando Collor de Mello oficializou a criação da reserva, a maior do país, com terras contínuas e não descontínuas, como muitos poderosos queriam. Mas a paz não chegou aos yanomami.

________________

TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS Fondateur: LELIO BASSO Sessão Amazônia brasileira Paris,12-16 de outubro de 1990

Resposta de David Kopenawa Ianomami e Itabira Surui Paiter sobre a relação com os brancos, pergunta formulada pelo Tribunal Permanente dos Povos.

Os índios querem a sua autonomia: ou seja, garimpeiros, colonos, madeireiros, fazendeiros, mineradoras, gateiros, seringalistas, missionários, antropólogos, funcionários, todos fora da sua terra. Claro que quem apoia o Índio, assessora os índios, defende a saúde e o direito dos Índios, respeita os Índios, têm confiança, estes podem permanecer. Nós iremos até mesmo convidar.

Os índios nunca expulsaram ninguém. Os índios não devem nada a ninguém. Os brancos nos devem muito. Derrubam árvores, envenenam os rios, matam os peixes, espantam a caça, transmitem doença. Nós estamos cansados de ver o branco destruindo tudo. Os Índios sabem preservar sua floresta. Nunca destroem nada. Por isto, os Índios querem conversar, negociar com o Presidente Collor e os brasileiros e os outros povos. O Índio é o primeiro brasileiro. Então: o Collor deve procurar todas as lideranças indígenas das áreas para conversar, para perguntar o nosso pensamento, o de cada aldeia. Porque nós pensamos diferente. Pensamos só o que temos direito. Não queremos nada do branco. Queremos as terras demarcadas, sem invasões e o pleno usufruto do solo, subsolo, nosso peixe, caça, roça, como nosso costume.

AÍ, fazemos um acordo, depois que todos os invasores forem retirados, inclusive os garimpeiros e madeireiros do Jucá [Romero Jucá era então o governador de Roraima]. Não queremos: fora. Queremos paz, viver tranquilos, sem briga, sem problemas. Estamos esperando o Collor para conversa. Este é o pensamento de nossos povos, é como diremos os Índios que aqui estamos por escrito. E’ a palavra de David Kopenawa Ianomami e Itabira Paiter Surui.

Discussão

3 comentários sobre “A guerra aos yanomami

  1. “Quem está criando esses problemas é o capitalismo(…)”.

    Isso define tudo! Pode fechar o tópico!

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    Publicado por He-Man | 28 de janeiro de 2023, 18:44
  2. Lúcio, estive no norte de Roraima apenas uma vez e passei pela estrada situada mais a leste da reserva dos Yanomamis, mas em algum trecho mais ao sul esta rodovia também passou em outra reserva indígena, porque nos alertaram a manter as janelas fechadas pela possibilidade de flechas atingirem os passageiros. Durante horas percorremos apenas campos onde predominam gramíneas e de ondem se via pequenas aves levantarem voo assustadas pela passagem do veículo. É uma paisagem lindíssima. Mesmo sem nunca ter visitado a reserva, qualquer ser humano que venha a contemplar as fotografias de Sebastião Salgado tiradas entre os Yanomamis em seu ambiente natural, fatalmente há de ser sensível a causa da inquestionável preservação de todos os direitos deste povo.
    O Jair Bolsonaro, assessorado pelo general Heleno, deviam responder criminalmente pelo genocídio praticado contra os Yanomamis. Deve haver uma condenação que os impeça de algum dia voltarem ao governo. É um horror ter de admitir que a metade do colégio eleitoral brasileiro quisesse mantê-lo no poder. Coisas da crise civilizatória dissertada pelo professor Alex, porém de convicções de direita. Até o dia da eleição minha irmã e meus colegas me enviavam fakes pelo ZAP propagando a vitória do genocida; uma amiga evangélica de mais de 80 anos gritava contra Lula como se o anticristo em pessoa estivesse na sala. Um fenômeno coletivo que agora reafirma de que a responsabilidade pelo holocausto é de cada um dos cidadãos alemães e não somente do Hitler. Os brasileiros também apoiaram a extinção dos Yanomamis; os evangélicos, que juram estar com o passaporte carimbado para ir para o céu, antes de tomarem o caminho da escuridão e do ranger de dentes, vão escutar a voz do Criador lhes dizendo: “o que fizestes aos meus pequeninos foi a mim que fizestes”(Mateus, 25: 40)

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    Publicado por J.Jorge | 29 de janeiro de 2023, 06:28

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