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Índios, Colonização, Estradas

O outro Brasil

Por paradoxal que pareça, os anos da ditadura foram época de vacas gordas para a cobertura jornalística na Amazônia. O governo militar promovia então a maior empreitada de abertura de fronteiras da história do Brasil. Eram longas estradas, assentamento de colonos, venda de grandes lotes de terras, mineração, início da construção de hidrelétricas, novas cidades – e desmatamento, muito desmatamento, muita confusão, o caos.

Felizmente eu estava em O Estado de S. Paulo, que se tornaria a principal fonte de informações sobre a história da ocupação recente – e definitiva – da Amazônia. Raul Martins Bastos e eu montamos uma rede de bons correspondentes por toda região.

O jornal topava custear todas as viagens que se propunha. E não precioso esperar o tempo passar quando espocava um conflito: logo estava no local, podendo permanecer ali os dias que fossem necessários para ter um desfecho do acontecimento.

Com meus contatos no governo, principalmente nos setores tecnocrata e militar, pude avaliar o seu grau de carência de informações. A Amazônia lhes era um tema muito caro, uma causa. Mas as decisões eram tomadas em circuito fechado e os negócios montados por grupos exclusivistas.

Esses servidores precisavam de um canal de divulgação. Mesmo sendo partes integrantes do governo, estavam excluídos do centro do poder. Por isso, davam sua aprovação a uma margem maior de liberdade da imprensa em temas amazônicos. Matérias extremamente críticas e denúncias graves escapavam à tesoura do censor, feroz em relação a outros assuntos, especialmente os políticos e os econômicos da gente de colarinho branco.

O sociólogo Fernando Henrique Cardoso usou e abusou das reportagens do Estadão no seu livro de 1977 sobre a expansão do capitalismo na fronteira amazônica. Praticamente se limitou a salpicar teoria sociológica sobre fatos extraídos do jornalismo, método abominado pelos acadêmicos de hoje (o que tem alguma coisa a ver com suas teorias metafísicas).

Gente poderosa em Brasília se irritava com as matérias do Estadão porque elas eram bem escritas e competentemente apuradas. Não só – nem principalmente – em fontes secundárias. Era porque o repórter ia ao teatro dos acontecimentos, conversando com os atores, observando o cenário específico. O material era muito rico. Mas nem sempre tinha consequências.

O autor do “milagre” brasileiro do regime militar, o superministro Delfim Netto (super-assessor de Lula e Dilma, nos bastidores), carimbou a (anti)ética da ocupação: era o momento de deixar o bandido se instalar na fronteira para amansar a terra da forma mais rápida e firme. O mocinho viria, um dia – se viesse. Sangue, morte, tiros, portanto, estavam liberados.

Daí que os conflitos estouravam, causavam mortes, davam prejuízo, se tornavam humanamente insuportáveis, mas Brasília não se mexia, São Paulo não estava nem aí, o Rio de Janeiro ia para a praia. Eles (os bugres primitivos) são selvagens. Eles que se matem, se esfolem e se acalmem – era a filosofia do “se o estupro é inevitável, relaxe e aproveite”.

Estas reflexões e reminiscências me veem a propósito do que está acontecendo neste momento na BR-230, a famosa Transamazônica (ou Transamargura, na sofrida ironia nativa).

Uma fila com 10 quilômetros de extensão, formada por dezenas de caminhões carregados de soja, drenando a maior de todas as safras desse grão, se estende a partir de um bloqueio na estrada armado por quase 200 índios munduruku. Os caminhoneiros não podem seguir mais um pouco para transferir sua carga para o porto de Miritituba, no rio Tapajós. O bloqueio da pista em ambas as direções não tem previsão de acabar.

O que querem os índios de tão importante para levá-los a um ato que causa grandes prejuízos? Eles reivindicam à Funai, algumas providências. A mais importante é a designação de um coordenador regional. O cargo está vago desde março.

A Funai, um dos órgãos mais burocratizados, incompetente e precários da administração pública federal, diz que os mundurukus querem a nomeação de Almir Macedo da Silva e mais recursos para a saúde. Alguma má vontade, desconfiança ou lerdeza impede a consumação do ato.

Pouco importa. A Amazônia está aí para isso mesmo: ser destruída ou se autodestruir enquanto os deuses burocratas decidem. Eles moram no outro Brasil.

Discussão

4 comentários sobre “O outro Brasil

  1. A Funai está falida. Nunca ninguém conseguiu dar a importância e a vitalidade necessária a instituição. Entra e sai governo e a situação continua a mesma. Havia esperança que com o PT, as coisas melhorariam, mas nada mudou. Para a Amazônia a Funai é muito importante, pois cerca de 20% da região está de alguma forma sob gestão da instituição.

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    Publicado por Jose Silva | 4 de maio de 2017, 18:32
  2. A Amazônia é o mais brasileiro dos Brasis. O Pará sobretudo. O que é o Brasil hoje sem a energia e o minério de ferro daqui? Sem a soja e etc? Somos a colônia da colônia.

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    Publicado por walfredosouza | 4 de maio de 2017, 18:46
  3. Realmente, o repórter ia ao teatro dos acontecimentos. O Brasil era outro, as Redações, outras. Criteriosas, severas, atentas. Valorosas lembranças, Lúcio Flávio.

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    Publicado por Montezuma Cruz | 19 de outubro de 2017, 11:30

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